SOBE SOM OWERÁ – Xondaro Ka’agu y Reguá
TEMPO CIRCULAR: INTELECTUAIS ÍNDIGENAS
Entrevista com Eliane Potiguara
ELIANE: Quando eu era mais jovem, eu achava que ser indígena é ser pobre. Ser indígena é ter uma cultura maravilhosa e de grande resistência. Haja vista esses 524 anos de opressão, onde apesar dos conflitos a gente continua preservados, com o sentimento de luta e de resistência, e por isso que o IBGE tem tratado essa questão como uma questão que está ascendendo. O Brasil é uma terra indígena. As pessoas brasileiras elas precisam ter essa consciência de que ela vem de uma ancestralidade. O Brasil é indígena, sabe? Independente de que ela viva no aspecto urbano, mas o Brasil ele é totalmente indígena. Ele é mais indígena do que africano. A gente também considera que os que vieram da África foram povos originários também, povos indígenas, então também o Brasil é um país originário. E a população que aqui chegou, que é a população colonizadora europeia, branca, ela foi minoritária. Nós somos a maioria, nós somos as primeiras nações desse território, chamado Brasil.
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ALEX: Considerada a primeira mulher indígena a publicar um livro no Brasil, a escritora Eliane Potiguara conquistou o respeito e admiração de estudiosos e leitores de suas obras. Em 2014, recebeu a Ordem do Mérito Cultural, um reconhecimento do Ministério da Cultura a pessoas e instituições que contribuem para fomentar a cultura brasileira. E em 2021 virou doutora honoris causa pela Universidade Federal do Rio de Janeiro.
Alfabetizada em casa apenas aos sete anos de idade, para trocar correspondências com os parentes que ficaram na Paraíba após sua família fugir por causa de conflitos fundiários, Eliane é uma otimista em celebrar educação como motor de transformação da humanidade.
Eu sou Alex Rodrigues, repórter da Agência Brasil. Neste abril indígena, celebrando os 20 anos do Acampamento Terra Livre, trazemos aqui para a Radioagência Nacional uma série de quatro entrevistas que fiz com intelectuais e lideranças indígenas. Confira a conversa com Eliane Potiguara.
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ALEX: Eliane, você costuma ser apontada como a primeira mulher indígena a publicar um livro no Brasil. Acredito que seja a cartilha a Terra é Mãe do Índio, de 1989. Antes mesmo disso, alguns dos seus textos já vinham circulando. Mas, desde a publicação do seu primeiro livro, muitos outros autores e autoras indígenas surgiram. Gostaria de, para começar a nossa conversa, saber ao que a senhora atribui essa mudança. O que que motiva o surgimento de tantos autores indígenas nas últimas décadas.
ELIANE: Bom, em primeiro lugar, a voz sufocada da população indígena do Brasil, né. Muitas das pessoas, professores, líderes indígenas que tinham algo para contar, para dizer, para explanar, muitas dessas pessoas elas encontraram um canal. Quando a gente elaborou essa ideia do pensamento indígena, que volta para a questão da literatura, para transformar todo esse pensamento em papel, em livros, né, a gente achou um canal de resistência e luta, né, onde a gente pudesse divulgar a situação em que vivem os povos indígenas, desde a colonização. Então, é uma iniciativa transformadora e inspiradora também, né, porque mexe com o universo cultural, o inconsciente coletivo da população. Então, a gente colocar um material escrito para que a gente possa divulgar nas escolas urbanas, né, conscientizar os professores da sociedade civil e também trabalhar com os professores indígenas e os alunos indígenas, isso para nós foi um campo que ainda não era conhecido. Por quanto às escolas e às sociedades, enfim, elas estavam utilizando material didático e material literário voltados para a realidade do colonizador, né, a realidade do não indígena. Então, quando a gente traz a realidade indígena para dentro da sala de aula, e para os professores, né, e para a comunidade indígena também, a gente está fazendo um trabalho extremamente revolucionário, porque, na realidade, a cultura indígena ela é oral. E com o avanço das tecnologias, da internet, né, esse mundo que cresceu, a gente encontrou esse caminho de poder revolucionar nossas ideias. Por isso que os professores ficaram interessados e realmente antes de divulgar a cartilha, a cartilha não, o livro A Terra é a Mãe do Índio, pessoalmente, né? Eu comecei a trazer os textos, alguns textos em pôster, em cartilhas, panfletando, utilizando esses pôsteres, panfletos, como uma forma de entregar nas reuniões, nos seminários, nos encontros indígenas, entregar em loco essas folhas, esses pôster, justamente para a motivação da nossa comunidade indígena.
ALEX: Eliane, você já antecipou alguns pontos de resposta da minha segunda pergunta. Ainda assim, eu quero fazê-la para você aprofundar o seu pensamento. De que forma, então, que esse trabalho que você classifica como revolucionário, ou seja, permitir o acesso da população em geral a uma narrativa indígena, ao ponto de vista indígena, nos mais variados gêneros literários, pode contribuir para o futuro dos povos indígenas e da sociedade em geral?
ELIANE: É justamente porque eu disse que o processo que estamos trabalhando, dessa literatura escrita e até oral, porque quando a gente também vai às escolas, quando a gente vai falar com os professores ou com a própria comunidade, a gente também utiliza a oratória para narrar o conteúdo do livro. Então, nós também utilizamos a oratória e a escrita. E isso contribui para a sociedade indígena e não indígena como um elemento de conscientização política de quem somos, para onde vamos, o que queremos, né. E quem somos como povos indígenas e que nós podemos contribuir com a sociedade brasileira. A gente tem essa consciência de que os povos indígenas, já vista a Conferência do Meio Ambiente de 1992, ter convidado os próprios povos indígenas para falar com os governos do exterior, né? E com o governo brasileiro sobre a importância dos conhecimentos tradicionais e a propriedade intelectual indígena como forma de defesa da época. Eles chamam de meio ambiente, nós chamamos de natureza. Então, como preservar a natureza, como trabalhar com a natureza sem poluir, né. Então, para nós tem sido um momento bem especial no sentido de que a gente possa contribuir com a sociedade e levar também os nossos professores indígenas, a nossa liderança, as nossas crianças indígenas, a um momento novo, a um momento de incentivo, um momento de espiritualidade, um momento de conscientização da nossa ancestralidade para a defesa da identidade indígena e a preservação e a necessidade de continuar essa força ancestral que nós temos.
ALEX: No seu poema Identidade Indígena, a senhora destaca a importância da ancestralidade para a afirmação e a preservação da identidade indígena. A senhora aposta que no futuro os povos indígenas brilharão no palco da história e não mais precisarão sair pelo mundo embebedados pelo sufoco do massacre, a chorar e derramar preciosas lágrimas por quem não nos tem respeito. Estou citando trecho do seu próprio poema. Passados tantos anos, a senhora mantém essa expectativa, essa esperança? O futuro é ancestral, como a senhora já previa há tantas décadas?
ELIANE: Exatamente. Estou de acordo com o incentivo. Eu sou uma pessoa que acredita nas mudanças. Eu acredito na concentração política. Eu acredito que nós vamos conseguir conscientizar a população em geral como ela já vem sendo conscientizada, há uma grande parcela de pessoas já preocupadas com a questão do meio ambiente, com o aquecimento global, então a gente já vem percebendo essa mudança e por que não? Essa mudança ela não pode ser crescente. Muitas pessoas dizem que o mundo vai acabar, a Terra vai mudar, mas eu ainda tenho uma esperança e eu passo essa esperança para as pessoas. Porque senão o processo de depressão que nós estamos vivendo enquanto sociedade, geral, não digo nem a sociedade branca, mas a sociedade em geral, eu acredito que trabalhar com uma educação mais autêntica, mais voltada para a realidade que vivemos, ela é uma educação transformadora. A gente tem condições de transformar. Eu, como professora, formação de alunos e formação de professores, eu acredito numa mudança positiva. Eu não tenho essa mentalidade de que o mundo vai acabar. Eu tenho para mim que nós vamos conseguir chegar a um patamar de dignidade para todos os povos.
ALEX: No mesmo poema, em outro trecho, a senhora menciona que as contradições nos envolvem e as carências nos encaram como se batessem na nossa cara toda hora. Pensando no atual contexto, nós temos, segundo o IBGE, crescimento demográfico da população indígena. Entre o censo de 2010 e o censo de 2022, divulgado em 2023, houve um grande crescimento da população que se autodeclara indígena. E, ao mesmo tempo, nós temos um agravamento de alguns conflitos e de algumas crises humanitárias envolvendo algumas comunidades indígenas, que remete, então, a esse ponto que a senhora menciona de que as contradições seguem nos envolvendo. Diante disso, e considerando que o futuro não está dado, que ele está em disputa e a própria diversidade indígena, como é que a senhora imagina o futuro dos povos originários? Como é que a senhora imagina que as comunidades estarão vivendo daqui a algumas décadas?
ELIANE: Eu tenho alguns contos sobre uma grande tragédia, né, uma grande tragédia histórica com relação aos povos indígenas, desde a colonização até hoje. O final desse conto é o que reflete o que eu acho, enquanto ser humano e enquanto professora. Passando pelas contradições, pelas lutas, pelas lutas de resistência, né, por todos os conflitos ambientais. Quando eu chego ao futuro, que pode só ser breve ou não, pode só ser longo, eu acredito na evolução da humanidade, acredito também na evolução das mentes e das almas e dos espíritos, acredito nessa evolução humanitária contra esse sistema opressor, onde o colonizador, o neocolonizador, o capitalista, na realidade, o pensamento dele da exploração do homem pelo outro, onde ele só vê o dinheiro, onde ele só quer ver crescer o seu capital, e ele só cuida da sua família, e ele não cuida da população envolvente, né. Ele é extremamente egoísta, enquanto uma camada da população brasileira e a sociedade indígena é uma sociedade que trabalha mais o outro, que vê o outro. Então nós estamos vivendo um dilema, né, um conflito, como sempre foi, que é a luta de classe na realidade. E eu percebo que nós podemos, paulatinamente, chegar a um momento como os Navarro, por exemplo, chegaram, que os Navarro hoje têm comunidade indígena altamente tecnológica e que os Navarro não perderam a sua identidade, a sua cultura, a sua língua, a sua espiritualidade, e vivem num processo de territorialidade totalmente voltado para os princípios indígenas e para a identidade, a preservação da identidade. Então nós temos isso nos Estados Unidos, nós temos no México, nós temos muitos povos na Finlândia, como o Sámi, por exemplo, que possuem televisão, são donos de televisão, donos de rádio. Então, nós temos condições, né?
ALEX: Agora, Eliane, ainda que este processo comporte a manutenção, a preservação do modo de vida e das tradições indígenas, há alguns desafios, como, por exemplo, como equacionar esse processo que você descreveu com, por exemplo, o respeito às comunidades que ainda hoje optam por viver isoladas, ou como equacionar conflitos como aquele vivido pelos Guarani-Kaiowá do Mato Grosso do Sul, espremidos pelo crescimento agrário e pelo crescimento populacional ao redor de suas terras. Isso é também fruto dessa contradição. Apesar de otimista, você enxerga dificuldade para equacionar essas questões, considerando a diversidade de costumes e de tradições indígenas existentes no Brasil?
ELIANE: Esse tipo de população que sofre esses massacres diários, esse povo que toda hora possui uma violação dos seus direitos, e eles continuam a sua luta, eles estão ali, né, resistentes, né? Apesar dos suicídios dos jovens, apesar de toda a violência que ali é estabelecida, eu vejo como uma luta de resistência que uma hora vai acontecer, sabe? Nós temos um governo brasileiro hoje que está totalmente a favor dos povos indígenas e nós podemos fazer diferença nesse contexto governamental. A nossa preocupação é o próximo governo, porque se nós não lutarmos hoje pela conscientização das cabeças, das mentes e dos corações, a gente pode regredir para um momento obscuro, né? E a gente não pode cair nessa questão. Nós temos que cada dia estar nas escolas, trabalhando com os professores, conscientizando o Congresso Nacional, os deputados, apesar que dá inimizade, né? Mas a gente acredita que, no fundo, no fundo, a gente tem o poder da conscientização para um final desse conflito, né? Dessas terras serem demarcadas realmente, porque não se consegue, né, está tudo empacado por conta do agronegócio, mas a luta continua.
ALEX: Idealisticamente, você pensa num futuro, portanto, em que os índios terão domínio e acesso a essas tecnologias que você citou, preservando sua identidade?
ELIANE: Claro, nós somos altamente voltados com uma fidelidade incrível, uma fidelidade ancestral. Olha que lindo isso. Fidelidade ancestral de preservar essa força e nos mantermos alinhados com a nova tecnologia. Inclusive, agora, recentemente, em Brasília, no CNPq, nós participamos de um seminário da maior amplitude da mente e da ciência para discutirmos esse tema e iniciar uma luta relativa à ciência indígena, né? Junto ao CNPq. Então, isso é um passo que estamos dando para o futuro. Os indígenas estarem atrelados à sua ciência ancestral e articular essa ciência ancestral com a ciência no contexto geral.
ALEX: Eliane, para encaminhar para a conclusão, gostaria de tratar de um aspecto pessoal. Sua fala, você defende a importância da educação, você atua com a educação, você se dedica à escrita e a pensar as questões, né, nacionais, mas você tem uma história muito interessante nesse ponto. Você foi alfabetizada com que idade?
ELIANE: Eu fui alfabetizada um pouco tarde, né? Fui alfabetizada dentro de casa, com uns sete anos, mais ou menos. Eu fui alfabetizada justamente com o objetivo de escrever as cartas que a minha avó enviava para a Paraíba, terra de onde ela teve que fugir por conta do processo da colonização do algodão, nos tempos de 1910, 1920, enviar para alguns amigos, algumas paredes que ficaram no estado da Paraíba. A área indígena Potiguara, onde é a origem do meu bisavô, da minha avó, Chico Solon de Souza, Maria de Lourdes de Souza. O Chico Solon perdeu a sua vida nesse processo da colonização do algodão. E a minha família toda foi ameaçada de morte e teve que se exilar em Pernambuco inicialmente e depois vindo para o Rio de Janeiro. E foi aí que eu cresci no gueto, no Morro da Providência. Eu cresci no morro da Providência, né? E eu sou fruto desse processo de colonização, de assassinato, de família imigrante, de família sofrida. O sofrimento dessa família foi tanto que toda a minha família faleceu de câncer, sabe, de doenças que nós indígenas não tínhamos, né, naquela época. Tenho isso na memória, os minutos, os segundos, os olhares, as lágrimas que saíam dos olhos e das rugas das minhas tias-avós. Eu tenho isso e foi isso que me deu essa grande força de lutar, entendeu?
ALEX: Pensando nisso, qual foi a importância do letramento e da educação para você, Eliane? E, por extensão, qual a importância que você acredita que a educação tem para o futuro das comunidades indígenas?
ELIANE: Para mim foi importante porque a partir dessas cartas que eu escrevi e dessa resposta que a gente recebia, que era de conteúdo altamente sofredor, eu comecei a compreender o que se tratava. Ao longo das histórias, dos anos, eu fui compreendendo que a minha família era uma família exilada. Até entender que nós éramos indígenas também me levou muito tempo. E só depois, com os estudos com o Paulo Freire, que eu me formei, é que eu fui entender que eu vinha de uma sociedade discriminada, uma sociedade que sofria altamente o racismo, em todos os níveis, e que nós ainda éramos chamados de incapazes no Código Civil. E que na Constituição esse código caiu, né. E ali se estabeleceu em 1988 uma Constituição melhor, mas que ainda deixava aquém, que ainda precisa lutar mais pela educação indígena, pela preservação das línguas indígenas, que é um dos pontos que o Ailton Krenak, que assumiu a Academia Brasileira de Letras, está comprometido com a defesa dessas línguas, né. Então essa minha luta é uma luta até eu morrer. Até eu morrer. Vai ser uma luta pela cultura, pelas línguas, pelas tradições, né. E eu, com 74 anos que eu vou fazer, ainda vejo um futuro promissor para nós, enquanto povos indígenas.
ALEX: Agora, por extensão, pensando na sua história de vida, qual é a importância da educação para a organização futura das comunidades indígenas?
ELIANE: Nós temos hoje uma educação diferenciada, quer dizer, uma educação voltada para a realidade indígena, para os costumes, para a espiritualidade. Essa educação é totalmente trabalhada por professores e gestores indígenas e isso é um fato bastante relevante para a identidade dos povos indígenas. Hoje temos também já vários profissionais, como médico, antropólogo, esses dias mesmo participamos da posse da diretora do Museu do Índio, uma indígena Caingang, Fernanda Caingang. Estamos aqui realizando um seminário sobre conhecimentos tradicionais, está sendo um curso de formação. São esses momentos que a gente vai encontrando os parentes e nós vamos vendo como está o grau de comprometimento dessa população com o futuro e com a educação voltada para a especificidade indígena. Isso é algo revolucionário, como eu já te falei. Os indígenas se formando como médicos, como cientistas, como professores, escritores, assumindo cargos de poder, porque é importante, assim como a ministra, o Ministério dos Povos Indígenas, como o Congresso Nacional, temos deputadas. Então, a gente tem que assumir alguns postos para garantir, em lei, o processo legislativo e os nossos direitos.
ALEX: Excelente, Eliane, te agradeço pela atenção, pelo tempo dispensado. Não sei se você quer acrescentar algo mais, partindo da ótica de que a palavra-chave dessa série de matérias de personalidades indígenas é a palavra futuro. A gente está querendo ouvir a opinião, né, dos entrevistados a respeito do futuro das comunidades indígenas.
ELIANE: Sim, sim, acrescento que o futuro é ancestral, que o Brasil é terra indígena, que o brasileiro é oriundo da cultura indígena, que o brasileiro em si deva se conscientizar mais sobre as suas raízes e dizer que vocês podem me encontrar no elianepotiguara.org.br. Seria um prazer tê-los como visitantes.
ALEX: Excelente.
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CRÉDITOS
A reportagem, entrevistas e narração foram minhas, Alex Rodrigues.
Edição, roteiro e montagem de Akemi Nitahara.
Revisão, coordenação de processos e implementação web de Beatriz Arcoverde.
Utilizamos a música Xondaro Ka’aguy Reguá, do rapper indígena OWERÁ, do povo Guarani Mbyá, Aldeia Krukutu, na zona sul de São Paulo.
No último episódio do especial Tempo Circular: intelectuais indígenas, a entrevistada é a ministra dos Povos Indígenas, Sônia Guajajara.
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