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Estas criaturas, com o seu nariz empinado disfarçado de simpatia e bons modos, todas “Dona Luísa, como vai?”, todas “Dona Luisa, o que é que tem hoje fresquinho?”, todas “ai, que maravilha de carapauzinhos, Dona Luísa” enquanto apontam para as sardinhas, todas de saco de pano ao ombro, veem-me aqui a amanhar peixe e acham que Luísa é um desperdício de nome para uma peixeira. Luísa é um nome bom, sim, mas é para darem às filhas e chamarem-lhes “Luísinha”. Agora, a uma mulher cheia de escamas no avental e na blusa, escamas do cabelo até às socas de borracha – “são Crocs, Dona Luísa? Ai, que giras!” -, isso é um nome que nem fica bem. Eu conheço-lhes o tipo, o perfil. Já andei no meio delas, não fui peixeira a vida toda.
Vim estudar para Lisboa e fiquei por cá, como acontece com tantos. Comunicação Social, era o meu curso, e ainda não ia a meio quando arranjei maneira de estagiar num grande grupo de comunicação, onde escrevi para diversas publicações, de revistas de lifestyle a jornais de noticiário popular, passando ainda por serviços considerados menores, tais como escrever para sites desses meios. Foi, aliás, por aí que comecei, com textos curtos, para perceber a dinâmica das publicações e o tom da linguagem, mas acima de tudo para fazer aquilo que os mais seniores não queriam fazer. Aos 19 anos, qualquer trabalho publicado com o meu nome era para mim sinónimo de privilégio.
Quando terminei o curso já tinha contrato de trabalho e escrevia para uma das revistas. Nos quase três anos em que conciliei o trabalho com os estudos, foram mais as amizades que fiz nas redações do que nas turmas da faculdade. Não fui, aliás, particularmente ativa no que respeita à boémia que normalmente se associa à vida académica. Para mim, estar na universidade tinha um objetivo claro: estudar, criar ferramentas, adquirir conhecimento. Hoje, ao organizar estas ideias enquanto faço contas ao peixe que na próxima madrugada tenho de ir buscar ao Mercado Abastecedor, compreendo o quanto me iludi no momento em que pensei ter feito o que estava certo e que tinha tudo sob controlo.
Compensei a falta de boémia académica com a vida social que o trabalho me permitia. Deslumbrei-me, pois claro, com os jornalistas mais velhos, homens e mulheres, que passei a ter como referência à medida que fui percebendo quem eram, o que representavam, o peso que tinham. Fulano tal era especialista em determinado assunto, a não-sei-quantas era sumidade noutra matéria, aquele ali fez um livro de estilo, aquela outra não suportava quando alguém usava certa expressão. Com estas características associadas a nomes e rostos fui construindo uma espécie de Olimpo que eu contemplava de perto, de muito perto, ao ponto de me ter tornado próxima de algumas dessas pessoas.
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O Zé Carlos era um desses nomes com rosto que integravam o grupo das eminências. Editor numa publicação e colunista convidado em várias, era pouco mais velho do que eu quando atingiu um ponto a que eu não sonhava ascender nem no ponto mais alto da minha carreira. Jovem, irreverente, inteligente, brilhante e cheio de verve, tornou-se rapidamente no alvo da minha atenção deslumbrada. Ele era tudo o que eu queria ser e da maneira como eu queria sê-lo, com mérito, com rasgo, com o reconhecimento dos pares. O Zé Carlos, por seu lado, também reparou em mim. Eu era uma miúda dedicada, curiosa e prática, que conjugava muito bem um sentido de responsabilidade apurado com uma bestial capacidade para me desenvencilhar e resolver problemas. A minha escrita não era eloquente como a do Zé, mas era competente e desembaraçada, e o meu trabalho era rigoroso e sempre entregue a tempo. De certo modo, éramos as coqueluches da empresa.
Tornámo-nos naturalmente próximos, até porque a vida social dele, tal como a minha, consistia em sair com os camaradas da redação. E a proximidade tornou-se intimidade muito rapidamente. Éramos o casalinho brilhante, como se fôssemos daquelas crianças sobredotadas que andavam sempre juntas, um par de eleitos, um duo dinâmico. E vivíamos tudo isto sem fazer distinção entre o que era da esfera do trabalho e da vida pessoal. A nossa vida pessoal era o trabalho e, como trabalhávamos juntos, a nossa relação fazia parte de ambos os termos da equação. E éramos muito felizes assim. Tínhamos um gosto especial pelo trabalho e uma ambição semelhante – e que se intensificava no nosso conjunto, com um a puxar pelo outro.
Vivíamos juntos e tínhamos um estatuto obviamente invejável na empresa quando, mais ou menos de repente, todo o panorama mudou. O diretor do Zé Carlos decidiu sair, ir à vida dele. Tinha muitas décadas de experiência, um pé de meia robusto e a possibilidade de ser muitíssimo bem pago por cada texto que escrevesse, pelo que considerou que não fazia sentido continuar a consumir-se 12 ou 14 horas por dia, seis ou sete dias por semana, quando já não precisava de o fazer. Toda a gente achou que o Zé Carlos seria o sucessor natural, mas a administração tinha outros planos e foi buscar alguém de fora para assumir a direção. Uma mulher, ainda jovem o suficiente para me fazer pensar em possibilidades. Contudo, houve uma possibilidade em que eu não pensei: que ela detestasse o Zé. Mas detestava. E infernizou-lhe a vida. De tal modo que o Zé Carlos acabou isolado, perdeu as graças da administração e começou mesmo a ser visto com outros olhos pelos demais pesos pesados. Eu própria comecei a sofrer por tabela.
Numa situação destas, nem sempre conseguimos ser clarividentes. Principalmente quando passamos de joias da coroa a persona non grata num intervalo de semanas e sem explicação aparente. E então sentimos que é preciso estabelecer um plano de fuga. Estas situações são capazes de levar uma pessoa à loucura, porque nos sentimos constantemente acossados e desvalorizados, subestimados e desrespeitados, não importa aquilo que façamos, a qualidade com que o fazemos e a dedicação que tenhamos à causa e à profissão. Quando perdemos as graças de quem manda mais vale fazer as malas e partir para outra. “Às vezes, é daqui que nascem as oportunidades”, dizia-me o Zé Carlos, e eu só me lembrava do Passos Coelho a mandar-nos emigrar porque era uma boa oportunidade. O otimismo do Zé, no entanto, consegue ser muito persuasivo, ou não fosse ele célebre pela sua eloquência.
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“Vamos estabelecer o nosso próprio negócio”, dizia-me ele, “vamos ser patrões de nós mesmos”. “Mas negócio de quê, Zé? Tudo o que eu sei fazer é escrever, e tu a mesma coisa”, dizia-lhe eu. “Eu tenho um plano.” Quando o Zé Carlos tinha um plano, eu confiava nele. E o plano dele era tão simples que, à sua maneira, até fazia sentido: abrir um estabelecimento que colmatasse uma determinada necessidade num sítio devidamente identificado; o negócio devia consistir na venda ao cliente, ou seja, nada que obrigasse a que tivéssemos um grande know-how numa área, mas que, pelo contrário, permitisse funções que qualquer pessoa minimamente competente pudesse executar. “Abrimos uma loja e vendemos coisas”, disse. E eu disse que sim. A situação na revista deixava-me de rastos, então queria resolver o assunto o mais rapidamente possível.
“Encontrei!”, disse o Zé certo dia. “Descobri o espaço ideal.” Uma pequena loja não muito longe da redação, e também próxima da nossa casa. Só faltava encontrar-lhe a vocação. “De que é que sentes falta quando vamos às compras aqui?”, perguntou-me. E eu, na minha inocência, “de uma peixaria”. E assim que o disse fiquei tão espantada quanto ele. “Uma peixaria?” Parecia um absurdo, mas era a verdade. Não havia nada ali nas redondezas. Podia resultar. Ele não ficou muito convencido, mas também não rejeitou a ideia. Disse “de qualquer modo, será temporário, juntamos dinheiro e voltamos à escrita”, era este o seu plano.
Despedimo-nos. Primeiro, o Zé Carlos, depois eu. Ele foi avançando como projeto da loja, fazendo os contactos, tratando das burocracias. Quando quase tudo estava pronto, demiti-me também. Não houve surpresas na empresa, claro. Bem vistas as coisas, tinham sido eles a empurrar-nos para fora dalia, pelo que as nossas cartas de demissão não provocaram o menor espanto. Alguns colegas mandaram mensagens a desejar felicidades, outros nem isso. As expressões de surpresa só chegaram quando abrimos a loja. “Peixaria de Letra – frescos e congelados”, dizia no toldo. Lá dentro, dois jornalistas ainda com a carteira ativa, tomavam conta de duas arcas de congelados, mais duas arcas verticais e um balcão de gelo onde se apresentavam os frescos.
A surpresa levou a que se falasse de nós no meio. O “duo dinâmico” agora vendia peixe e marisco. Achavam graça. Iam lá, às vezes só para confirmar com os próprios olhos. Outros, compravam uma coisinha ou outra, só para disfarçar. Ao princípio, incomodava-me, mas depois percebi que o facto de haver gente a entrar e a sair da loja criava movimento, e que o movimento é bom para o negócio. Outras pessoas, curiosas, acabavam por entrar, ficavam a conhecer. Em pouco tempo, tínhamos clientela habitual e fiel. Mais: alguns antigos colegas começaram a fazer compras na Peixaria de Letra. O negócio prosperou. Conseguimos rapidamente saldar dívidas, pagar obrigações e ainda juntar algum dinheiro.
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Entretanto, o Zé Carlos conseguiu garantir uma colaboração a escrever para um programa de televisão de análise política. Rapidamente lhe perceberam o talento e não tardou a que tivéssemos de contratar um funcionário, visto que ele já não me conseguia ajudar com a loja, começou ele próprio a fazer comentário político. Era agora um rosto conhecido. E isso também o afastou da peixaria. Isso e não só. O facto de ter conhecido uma jovem talentosa na equipa de informação também ajudou a afastá-lo, não só da peixaria, mas também de casa e de mim. Não descobri logo, mas não demorei a desconfiar. E quando o confrontei ele também não negou. “Sabes como são estas coisas, Luísa… eu sou homem”, justificou-se sem a proverbial eloquência que costumava distingui-lo de todos os outros.
Fui-me embora, fechei a loja. Durante algum tempo, fiquei desorientada. Não sabia o que fazer. Toda a minha vida desabara de repente. Todos os sonhos ficaram reduzidos a escamas e pedaços de gelo, dedos gretados e um dia inteiro de socas calçadas. Vendi a loja. Com o retorno, que não foi muito, estabeleci-me com uma banca no mercado. Houve quem insistisse comigo para voltar ao meio, para regressar às redações. Diziam-me que o problema nunca fora eu, mas sim o Zé Carlos – aparentemente, atirou-se à nova diretora assim que ela assumiu funções e a mulher não gostou. Mas eu sentia-me demasiado humilhada pela minha história. E pensei “isto foi o que a vida me deu, é com isto que prossigo”. E faz-me rir as maneiras pedantes das senhoras que me chamam “Dona Luísa” e não distinguem polvo de pota. Se elas soubessem a minha história haviam de ficar com o nariz menos empinado a olhar para as petingas.
*Se conhecer uma história real envie-a para m.oliviasebastiao@gmail.com. As suas ideias podem dar origem à história do próximo sábado.
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