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Histórias de Amor Moderno: “Seja em que idade for, não há nada mais romântico do que a aventura” – Atual

Histórias de Amor Moderno: “Seja em que idade for, não há nada mais romântico do que a aventura” – Atual


Cabelos ao vento, a música bem alto, óculos de sol, o horizonte entrecortado pelos pinheiros e suas sombras. Todos os sonhos da juventude refletidos nas paisagens extensas, tornadas laranja e dourado pelos raios do fim do dia. Toda a paixão da existência condensada num só momento, aquele que se vive naquele preciso instante, não deixando rasto do passado nem permitindo preocupações com o futuro. O presente: tudo o que existia. A minha mão na mão dele, as vozes cantando, aos berros e de ponta a ponta, o Is This It dos Strokes, gravado em cassete porque o autorrádio da Dyane não tinha leitor de CDs, muito menos as modernices de agora, com ligações USB e Bluetooth. Se queríamos ouvir mais uma vez a New York City Cops (“they ain’t too sma-art!”, cantávamos, com gosto) tínhamos de rebobinar a fita, na esperança de acertar no princípio da faixa.

Há carros cujo nome deve ser dito no feminino. Era o caso da Dyane do Dinis, uma Citroën descapotável e muito gingona que o tio dele lhe ofereceu. O Dinis tirou a carta à primeira, mal completou os 18 anos. No dia do exame de condução, um dia quente de fins de julho, chegou a casa e todos esperavam por ele e pelas boas notícias. Diante do portão, lá estava ela, a Dyane, com um laço vermelho na capota. O carro, todo ele brilhava, de cuidados, de lavagens, de enceramento, de orgulho da família. 



Eu tinha ido ter com o Dinis no fim do exame, sabia como tinha corrido, mas a família dele não fazia ideia: todo aquele aparato era fruto da confiança no menino-prodígio. “Então?”, perguntou o tio Zeca – o que lhe oferecia o carro -, sorridente e de braços abertos quando descemos do táxi. O Dinis sorriu, ainda incrédulo com a Dyane embrulhada num gigantesco laço vermelho, e disse “olha, passei!” Choveram abraços e beijos com aquela confirmação do que todos esperavam. O Dinis não era de falhar: se metia na cabeça uma coisa, essa coisa acontecia, desse por onde desse.

“Vamos de férias!” Mandou-me SMS nessa mesma noite. “Partimos amanhã.” O plano era simples: enchíamos uma mochila cada um com mudas de roupa e fatos de banho. Levávamos toalhas de praia e sacos-cama. “Não temos tendas, amor”, respondi-lhe depois de ler as suas instruções a respeito do material necessário. “Não precisamos de tenda: temos a Dyane.” Além de determinado, tinha um admirável sentido prático. E isso, quando temos 18 anos, significa ser-se aventureiro. E, seja em que idade for, não há nada mais romântico do que a aventura.







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Sweet little eighteen. Nessa noite quase não consegui dormir, tal era o empolgamento e a excitação com o dia seguinte. Saímos de manhã, mal o sol tinha nascido, deixámos a cidade rumo ao Sul. E então aconteceu: cabelos ao vento, óculos escuros, a música bem alto, o pacote inteiro tal como tantas vezes sonháramos, só que muito mais cedo do que poderíamos imaginar. Para quem acabara de tirar o carta, o Dinis conduzia muito bem, cheio de confiança. A Dyane, apesar de desengonçada, dava-nos a garantia de nunca excedermos os limites de velocidade, por mais que ele carregasse a fundo no acelerador. E isso descansava-me.

Na primeira noite, dormimos nas margens do Sado. Tínhamos apanhado o ferry e atravessado de Setúbal para Tróia. Chegados à Península, com o sol já pronto para repousar sobre o oceano e depois mergulhar nele, galgámos as dunas em direção ao mar. A ideia era dormir nos sacos-cama, deitados na areia. Só que a noite arrefeceu muito e levantou-se um vento marinho que tornou impossível qualquer tentativa de dormir em paz. De regresso à Dyane, pegámos no carro e mudámo-nos para perto do cais de embarque do ferry do lado de Tróia. Aí pernoitámos, sem grandes cerimónias. O primeiro dia fora longo e cansativo.

Na manhã seguinte, decidimos que não faríamos tanta estrada. Queríamos gozar mais os lugares, se possível as praias. Descemos até Melides, depois até Santo André. Parávamos, mergulhávamos, desfrutávamos do sol. Foi durante o almoço – um robalo fresco, pescado de madrugada, assado na brasa – que conhecemos um grupo de rapazes e raparigas que pareciam ter connosco muito em comum. Estavam divertidos, ligeiros. Brindaram connosco “a umas férias inesquecíveis”. Erguemos os copos. “À nossa!”

Descemos para o areal, íamos todos juntos. Queriam saber onde estávamos alojados. Dissemos-lhes que não estávamos, “a Dyane é o nosso porto de abrigo”, respondeu o Dinis. “Ótimo”, disse um deles, o que parecia liderar o grupo, ou, pelo menos, aquele que tinha a voz mais assertiva na tomada de decisões. “Podem juntar-se a nós, sendo assim.” À noite, juntavam os carros de todos num círculo alargado, de maneira a proteger o grupo do vento e de possíveis intrusos. Ao centro, faziam uma fogueira. Cozinhavam, comiam e bebiam, passavam música, fumavam drogas e dançavam até que o cansaço os fizesse parar. Achámos a ideia fabulosa e o convite irrecusável.







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O acampamento altamente improvisado revelou-se caótico desde cedo. As tentativas de atear o fogo para a fogueira falhavam sucessivamente. Teve de ser o Dinis a fazer o fogo e as brasas para que pudéssemos cozinhar. Por essa altura, a música, as cervejas – e não só – a rodar, tudo parecia mais importante e interessante para toda a gente. E eu, que não estava ali para ser desmancha-prazeres, ia tentando acompanhar o ritmo daqueles nómadas pós-modernos, cheios de ideias e de substância ilícitas, e com cada vez menos roupa no corpo. O Dinis começou a ficar apreensivo, “não sei se não devíamos ir embora”, disse-me ao ouvido. “Relaxa, amor”, disse-lhe eu.

Por esta altura, já mais de metade do grupo se passeava pelo “Círculo de Fogo” – era assim que eles chamavam ao acampamento – completamente nus, ou quase. Tudo era psicadelismo, das cores do fogo e do por-do-sol à música elíptica e cada vez mais alta, tudo acompanhado por estranhas e efusivas danças, muita bebida e muito fumo. E sabe-se lá que mais. “É o verão do amor”, gritavam eles, de vez em quando, em inglês, “It’s the summer of love, it’s the summer of love“, e dançavam, beijavam-se, agarravam-se. Apalpavam-se. E nós estávamos lá no meio. Recordo-me de ver a expressão do Dinis, em pânico. “Deixa-te ir”, dizia-lhe eu, e repeti várias vezes a frase, “deixa-te ir”. Sentia-me bem. “Deixa-te ir”, e sentia as mãos e os lábios a procurarem-nos e a encontrarem-nos. Deixámo-nos ir.

Deviam ser seis da manhã, ou pouco mais, o sol ainda nem tinha nascido quando senti o Dinis abanar-me para me acordar. Que cenário. Que confusão. Em torno das brasas decrépitas de uma fogueira já defunta, pessoas nuas e contorcidas, garrafas vazias, restos de comida. Vómitos. Um autêntico festim dionisíaco, revelado apenas pelas silhuetas que, aos poucos, se iam tornando mais nítidas. “Veste qualquer coisa, vamos embora.” Eu estava muito trôpega, muito confusa, ainda sob os efeitos de tudo o que tínhamos consumido horas antes. O Dinis pegou-me no braço e puxou-me, “anda, veste-te”. Não podíamos fazer barulho, não podíamos denunciar a nossa saída antes de ligarmos o carro – então, sim, não haveria como manter o silêncio.

Quando o Dinis ligou a ignição, houve algumas reações, mas ninguém se levantou para vir atrás de nós. Houve pessoas que se mexeram, mas só como se alguém as agitasse levemente na cama, enquanto dormiam. Só quando acelerámos é que o ruído se tornou demasiado evidente. O tal rapaz que parecia liderar as decisões pôs-se de pé, mas estava tão baralhado, tão confuso, que só o vi acenar quando já tínhamos arrancado em direção à estrada.







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“O que é que aconteceu? O que é que nós fizemos?” Há momentos em que se misturam aquilo que imaginamos e aquilo que na verdade vivemos, e ainda aquela confusão enevoada e pegajosa, que cria novas memórias e novas fantasias, em doses iguais, impedindo-nos de discernir o que é real e o que não é, o que aconteceu e o que podia ter acontecido, ou até o que não aconteceu mas gostávamos que acontecesse. Ou ainda outras variações sobre o mesmo género de possibilidades. 

O Dinis acelerou e aumentou o volume do autorrádio, “no, girlfriends, they can’t understand“, sorriu para mim, os Strokes no máximo, “your grandsons, they won’t understand“, e depois disse: “Se tu não te lembras, se eu não me lembro, então ninguém se lembra, nada aconteceu.” E continuámos, com o vento no rosto e o sol nos olhos protegidos pelas lentes escuras dos óculos, e a vida toda pela frente.

*Se conhecer uma história real envie-a para m.oliviasebastiao@gmail.com. As suas ideias podem dar origem à história do próximo sábado.













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