GALÕES DE AGROTÓXICOS que caíram no rio Tocantins em dezembro, após o desmoronamento de uma ponte que ligava Maranhão e Tocantins, foram encontrados no Pará, a mais de 300 km do local do acidente. Algumas dessas substâncias são consideradas cancerígenas e podem causar riscos ao meio ambiente.
A informação consta em um documento do Ibama (Instituto Brasileiro de Meio Ambiente e Recursos Naturais) de fevereiro, obtido pela Repórter Brasil.
O desabamento da ponte Juscelino Kubitschek de Oliveira, entre Estreito (MA) e Aguiarnópolis (TO), completou quatro meses nesta semana. Ao todo 14 pessoas morreram, e três continuam desaparecidas. Os trabalhos de resgate foram suspensos em janeiro, após alta no nível do rio.
Três caminhões caíram da ponte na hora do acidente, carregados com milhares de litros de agrotóxicos e ácido sulfúrico. Um deles transportava mais de 25 mil litros de pesticidas à base de 2,4-D, picloram e acetamiprido, acondicionados em galões de 20 litros.
Segundo o órgão ambiental, algumas bombonas de agrotóxicos foram localizadas em Nova Ipixuna e Itupiranga, no Pará, “a partir de 10 de janeiro”, 19 dias após o acidente. Um jornalista local chegou a noticiar a descoberta na época.
Apesar de o Ibama e outros órgãos governamentais afirmarem que não foi identificada contaminação da água até o momento, moradores locais e especialistas ouvidos pela Repórter Brasil temem que mais galões tenham se espalhado e jamais sejam retirados do leito do rio Tocantins.
“A gente nem sabe se a maioria das bombonas ainda continua embaixo da ponte, ou se já estão a quilômetros de distância. Isso é terrível”, afirma Fábio Kummrow, professor de toxicologia da Unifesp (Universidade Federal de São Paulo).
O trabalho de retirada dos materiais teve início logo após o desabamento. Mas até 9 de janeiro, apenas 29 dos cerca de 1.300 galões haviam sido retirados pelas equipes do Ibama, da Marinha e do Corpo de Bombeiros do Tocantins.
Com o aumento das chuvas, houve a necessidade de abertura das comportas da Usina Hidrelétrica Estreito, localizada três quilômetros acima do ponto do acidente. Isso levou o Ibama a suspender os trabalhos ainda em janeiro, pois a elevação do nível das águas tornou as condições de mergulho inseguras.
À Repórter Brasil, o órgão ambiental disse que, por esses motivos, “não foi possível verificar a integridade das bombonas”. “Com o término de tal período [chuvoso], as atividades de mergulho deverão ser retomadas para verificação e recolhimento das que ainda se encontram no local”, diz a nota do Ibama.. Estima-se que sejam necessários 145 dias para a retirada dos galões. Não há previsão para o reinício dos trabalhos.
O Ibama foi questionado pela reportagem sobre a dispersão dos galões pelo rio Tocantins, mas não respondeu a essa pergunta até a publicação da reportagem.
Para Kummrow, deveria ter sido feito algum tipo de contenção para evitar que as bombonas se espalhassem. “Seria necessário um monitoramento a cada 50 km, por exemplo, porque todo o percurso do rio pode ter sido impactado. Não dá para ficar só ali onde aconteceu o acidente”, defende.
O professor explica que, apesar de as bombonas serem bem resistentes, o longo período embaixo da água, as colisões com pedras e outros sedimentos do rio podem ter aberto fissuras que permitem que pequenas quantidades estejam sendo despejadas, trazendo impactos ambientais.
Rio Tocantins é ‘elemento central’ na vida de comunidades
O rio Tocantins nasce em Goiás e flui mais de 2.400 km no sentido sul-norte, passando por Tocantins, Maranhão e Pará, onde recebe as águas do Araguaia, até desaguar na Baía de Marajó, próximo a Belém (PA). Ele é uma das principais fontes de água para os municípios ao longo do trajeto, além de ser usado na irrigação de lavouras, no sustento de comunidades pesqueiras e como opção de lazer para moradores.
“Ele é muito mais do que um corpo d’água. É um elemento central em nossa vida cotidiana, economia e cultura”, afirma Conceição Amorim, coordenadora do Centro de Promoção da Cidadania e Defesa dos Direitos Humanos Padre Josimo, de Imperatriz (MA), cidade também banhada pelas águas do Tocantins.
“Eles não divulgam absolutamente nada! Não falam sobre estudos, sobre a situação da água, eles não dizem nada”, diz Conceição, indignada, a respeito da falta de informação dos órgãos públicos. “Parece que já deram como certo que, por causa da profundidade do rio e da falta de estrutura e condições técnicas, infelizmente os galões vão acabar ficando lá no fundo mesmo”, declara.
Desde o acidente, ao menos cinco ações foram ajuizadas para cobrar explicações do Estado sobre o desabamento e exigir planos e prazos para a reconstrução. Uma delas foi movida pela organização de Imperatriz, que pede também o monitoramento contínuo do rio Tocantins, com adoção de medidas para conter os danos e mitigar a contaminação.
Análises de água não são divulgadas desde janeiro
Apesar da cobrança da população, apenas dois testes de análise de água foram divulgados até o momento pelas autoridades. E um deles identificou a presença do 2,4 D – substância utilizada na composição do “agente laranja”, usado pelo Exército norte-americano na guerra com o Vietnã para desfolhar florestas e facilitar a localização de soldados inimigos.
Em 24 de dezembro, dois dias após a queda do caminhão, o agrotóxico foi encontrado em uma amostra de água coletada em Porto Franco (MA), a 30 km rio abaixo do ponto do acidente. A ANA (Agência Nacional das Águas e Saneamento Básico), então responsável pelo monitoramento, afirmou à época que o valor detectado era “significativamente inferior à concentração máxima permitida pelo Ministério da Saúde” para os padrões de potabilidade da água. Disse também que a concentração encontrada é comum em rios que atravessam regiões agrícolas.
Em comunicado conjunto no início de janeiro, emitido por ANA, Ibama e MMA (Ministério do Meio Ambiente), os órgãos afirmaram que uma nova amostra de água foi coletada no mesmo local, mas dessa vez a substância não foi detectada. Desde então, os resultados dos testes não foram mais divulgados.
Em fevereiro, o Ibama repassou ao Dnit (Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes), órgão responsável pela ponte, a tarefa de monitorar a qualidade da água. Foi aplicado no caso o princípio do poluidor-pagador, para que o responsável pelo dano ambiental arque também com a reparação e a prevenção.
O monitoramento da presença de agrotóxicos passou então a ser feito duas vezes por semana, em dias não consecutivos, em três pontos do rio: na barragem da usina hidrelétrica (local não afetado pelo acidente); no ponto do desabamento; e em Porto Franco (MA).
Questionada pela Repórter Brasil, a ANA afirmou que “relatório elaborado pelo Dnit indica que não há alterações relevantes dos parâmetros de qualidade de água”. Já o Ibama declarou que “desde que se iniciou os monitoramentos, nenhuma alteração na qualidade da água foi identificada acima dos parâmetros previstos nas normas”.
O Dnit, por sua vez, afirmou que todas as amostras coletadas desde fevereiro estão abaixo do limite de quantificação – valor mínimo que o equipamento consegue medir de certa substância na água. “Mesmo que haja traços dessas substâncias no rio, suas concentrações não são relevantes ou preocupantes neste momento”, diz o Dnit (veja as respostas na íntegra).
No Brasil, o alerta para contaminação da água para consumo humano costuma ser acionado apenas quando os níveis de agrotóxicos detectados ultrapassam o valor máximo permitido por lei.
A Repórter Brasil solicitou à ANA e ao Dnit o acesso aos resultados das análises de agrotóxicos na água, mas os órgãos não enviaram os laudos.
Especialistas apontam que há riscos do consumo contínuo de pequenas quantidades de agrotóxicos, mesmo quando estão dentro dos limites considerados seguros. O picloram, por exemplo, é persistente no solo e pode contaminar cursos d’água, e mesmo em pequenas quantidades pode afetar a biota aquática – seres vivos que habitam o ambiente aquático. O 2,4-D é classificado como possivelmente cancerígeno pela Agência Internacional de Pesquisa em Câncer, órgão da Organização Mundial da Saúde. Já o acetamiprido tem alta toxicidade para organismos aquáticos.
Logo após o acidente, a ANA também chegou a dizer que a alta vazão do rio Tocantins ajudaria a diluir rapidamente os pesticidas, o que diminuiria os riscos para a população. Para Kummrow, da Unifesp, não é possível fazer essa afirmação sem que os resultados sejam divulgados à população. “É muito fácil assumir que está chovendo, que a vazão está alta e que não há risco. É um discurso válido, mas sem dados numéricos, é um discurso vazio”, afirma. “Se está tudo normal, por que não divulgam os dados?”, questiona.
Beatriz Souza
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