PODCAST TRANSFORMANDO AS ARTES
SOBE SOM PRECISO ME ENCONTRAR – LINIKER
Deixe-me ir
Preciso andar
Vou por aí a procurar
Rir pra não chorar
CAI A BG
EPISÓDIO 6: NAVALHA CARRERA
NAVALHA: Então eu tava lá recebendo o prêmio Multishow num dia e no dia seguinte indo dar aula sendo quem eu não sou. Então eu tive que ter essa conversa, né, não tinha mais como sustentar. E foram recusas, né, as pessoas se recusando. É muito cruel isso de ter que pedir permissão pro seu empregador, sabe, isso é muito cruel. Mas é uma realidade que as pessoas trans passam. Então assim, no ensino, o ambiente escolar devia ser o ambiente onde as mudanças acontecem, mas é o contrário disso.
SOBE SOM PRECISO ME ENCONTRAR – LINIKER
Se alguém por mim perguntar
Diga que eu só vou voltar
Depois que eu me encontrar
CAI A BG
MARI: Entre o palco e os bastidores, das guitarras à produção musical. Navalha Carrera transita entre acompanhar e produzir grandes nomes da música brasileira, como Letrux e Jards Macalé, e seu trabalho solo, intimista e conceitual, no qual explora as sonoridades dos instrumentos e sintetizadores, relembrando as experimentações musicais da infância no piano da avó.
MARI: Multi instrumentista, também compõe trilhas sonoras e é professora. Quando iniciou a transição de gênero, comprovou o quanto cruel o mundo do trabalho pode ser com pessoas que não se enquadram em caixinhas pré-determinadas pela sociedade conservadora.
MARI: Olá, eu sou Mariana Tokarnia, repórter da Agência Brasil. Este é o penúltimo episódio do podcast Transformando as Artes, que traz entrevistas com artistas transgêneros de diversas vertentes, marcando as sete semanas entre o Dia Internacional Contra a LGBTfobia, comemorado em 17 de maio, e o Dia Internacional do Orgulho LGBT, em 28 de junho. Na nossa conversa, Navalha fala da sua formação musical, sonhos e realizações enquanto artista e pessoa trans.
SOBE SOM LINIKER
MARI: Navalha, acho que a gente pode começar com uma apresentação, queria que você se apresentasse e falasse um pouquinho de você.
NAVALHA: Bom, eu sou a Navalha Carrera, sou musicista do Rio de Janeiro, me identifico como travesti, né, daqui acho que é importante já indicar e deixar isso dito, e eu trabalho na música já há mais de 20 anos, estou com 40 anos de idade agora, atuo principalmente como guitarrista, produtora musical, compositora de trilhas, e é isso.
MARI: Falando um pouquinho da arte, como é que a música entrou na sua vida? Quando que você começou ali a se aproximar da música?
NAVALHA: Acho que ela sempre esteve, porque eu cresci numa família muito musical, principalmente a família do lado do meu pai. Eu tive uma bisavó, que eu não conheci, que ela foi concertista, ela tocava piano. Sei muito pouco sobre ela, na verdade, mas a minha avó tinha um piano, que ela herdou. E meus tios todos, por lado de pai, tocam algum instrumento, cantam. Então sempre em festas de família, aniversário e tal, todo mundo sacava um instrumento, e era sempre a maior parte da festa era o pessoal fazendo rodinha de violão, com flauta, e aí chegava um amigo de não sei onde que trazia um outro instrumento, e todo mundo ia tocando Tim Maia, Jorge Ben, um monte de coisa de MPB, assim, era sempre muito legal. Eu não participava ativamente disso, né, eu tava lá brincando com os meus primos e primas. Só que eu estava ouvindo tudo aquilo e sentindo aquela energia. Mas acho que onde eu, pegou mais, assim, foi quando eu ia brincar no piano da minha avó, né, que eu ficava tocando as notinhas assim, e eu ficava muito tempo prestando atenção em como os sons se combinavam de formas diferentes, como eu apertava duas teclas juntas e saia um tipo de som, e outras duas teclas saia um som estranho, e outra era um som mais bonito, e eu ficava muito tempo fascinada naquilo. E é basicamente o que eu faço até hoje, só que um pouco expandido, né, só que é exatamente esse mesmo deslumbre que eu tinha com como os sons acontecem, eu tenho até hoje. É o que eu faço. O que eu faço é ficar desvendando os sons.
MARI: E, Navalha, você é guitarrista, prioritariamente.
NAVALHA: Sim, prioritariamente.
MARI: E por quê? Como é que você chega na guitarra?
NAVALHA: Aí foi porque o instrumento do meu pai era o violão, né. Nessas rodinhas, eu tinha um tio que tocava flauta. E o meu pai, geralmente, estava tocando violão ou gaita. Então, sempre teve um violão lá em casa. Eu sempre gostei de música, né? Uma coisa que eu sempre me interessava muito era na trilha sonora dos filmes que eu assistia. Eu sabia cantar as músicas dos filmes e tal, mas eu nunca percebi isso como uma coisa diferente, né? Foi minha mãe que apontou isso muitos anos depois. Falou, ‘ah, você gostava muito de trilha sonora’. Eu falei, caraca, realmente, as outras crianças não tinham essa pira que eu tinha, né? Então, eu já tinha esse interesse, embora eu não percebesse. Mas aí, quando eu cheguei lá no começo da adolescência, que eu tava ouvindo muito Raul Seixas e descobri Beatles, e Beatles virou uma paixão muito grande. E os meus pais é que começaram a falar, não, aprende a tocar um instrumento. E eu tinha mó preguiça. Eu falava, e não, não quero, não quero. Aí ficavam toda hora insistindo nisso, eu pegava uma raquete e fingia que tava tocando guitarra, ‘não falei, você já pega raquete, pega o violão de verdade’. Aí minha mãe me ensinou alguns acordes e foi uma coisa muito legal, assim, porque eu acabei descobrindo que eu tinha uma facilidade com a mecânica do violão, né. Não vou dizer assim de cara que eu tenho facilidade com música, porque eu sou professora de música e eu sei que músicas são muitas habilidades diferentes envolvidas. E eu percebi que eu tinha facilidade com essa habilidade mecânica, de pegar o instrumento e conseguir fazer a música acontecer. E aí eu fui pegando revistinhas de música e fui aprendendo uma música atrás da outra. E quando eu entrei nessa, eu não conseguia mais fazer outra coisa da minha vida. Eu só queria saber de tocar violão o tempo todo. Não queria fazer mais nada. Virou um modo de vida.
MARI: E como que é hoje o seu processo criativo? Você é uma das grandes guitarristas do nosso tempo…
NAVALHA: Poxa, obrigada.
MARI: É verdade! Toca com, né, pessoas incríveis, conheci pela Letrux, mas tem Jards Macalé, muita gente aí na carreira. Como que é o seu processo criativo? Como é que você foi entrando nesse mundo da música também e foi estabelecendo essas relações?
NAVALHA: Bom, é interessante falar de processo criativo no meu lugar, né? Como eu sou instrumentista e produtora musical, eu não sou a pessoa que faz a gênese da música, né? Ou seja, eu não sou a compositora da música. Eu componho também, mas não é nem de perto, assim, ou nem de longe, melhor dizendo, o meu lugar principal. O meu lugar principal é como instrumentista, arranjadora, produtora. O que significa que eu pego uma música que existe como conceito, né? Como rascunho, e trabalho nela até ela chegar num lugar apresentável, nos palcos ou numa gravação de disco. Então, é um trabalho de encontrar as potencialidades, de escutar aquele rascunho, de escutar aquela música e começar a imaginar caminhos, né. Às vezes é muito difícil, porque eu gosto tanto de música que às vezes eu escuto um rascunho e pra mim aquilo já é tão bonito, que eu falo não quero mexer nisso não, tá tão bonito só assim, voz e violão gravado no celular, tem uma magia tão legal nisso e eu nem quero mexer, eu quero que continue sendo aquele jeito. Mas o meu trabalho é fazer um acabamento mais, sei lá, né, mais trabalhado. Então é encontrando esses caminhos, encontrando possibilidades. É muito interessante porque pode ir para qualquer lugar, né? Pode ir para muitos lugares diferentes. Então, o meu processo criativo é de ir encontrando esses caminhos. E eu sou uma pessoa muito estudiosa da música, né? Eu fiz faculdade, eu sempre gostei muito da parte teórica, da parte de entender, assim, como a música funciona. Funciona entre aspas, né? Porque a arte não funciona, a arte simplesmente é. A gente só inventa formas de escrever ela. Então, através disso, eu tenho esse lugar também de ficar pensando muito em termos de harmonia, em termos de arranjo, formas mais tradicionais, mas quando eu estou no processo criativo, eu não me ligo muito nisso. Eu acho que a questão é… Eu vi, acho que foi o Steve Morse, um guitarrista que falou isso uma vez que a gente estuda um instrumento pra não ter que pensar na hora de tocar. É mais ou menos que nem uma língua, né? A gente aprende a falar, a gente aprende como funciona aquela língua, mas a ideia é que quando você tá falando você não fica pensando sobre, né? Você simplesmente deixa fluir, mesmo que você não esteja seguindo a norma culta, que não é de forma alguma uma necessidade, nem na fala e muito menos na arte. Então, eu gosto de pensar assim, que eu estudo, eu me informo, eu pesquiso, mas na hora que eu tenho que criar, eu tento acessar um lugar que é mais intuitivo, que passa direto do cérebro pra fora. Inclusive, uma das coisas que eu mais faço quando eu tô criando arranjo é cantar, que eu não faço profissionalmente, eu não sou cantora, mas quando eu tô querendo encontrar uma linha de guitarra pra uma música, às vezes eu deixo a música tocando e começo a cantar por cima dela. E vou cantando, cantando, e isso é uma forma de acessar um lugar mais intuitivo. Que, bem ou mal, a gente pega um instrumento, existem alguns pensamentos já da mecânica, de como a mão funciona e de como o instrumento funciona que já te levam pra algum lugar. E eu percebo que quando eu crio cantando eu tô indo mais pra formas melódicas que eu acho que complementam mais a música do que o instrumento. É dessa forma que eu gosto de pensar.
MARI: Como o nosso podcast é, enfim, sobre a presença de pessoas trans nas artes, como que isso também atravessa o seu trabalho ou atravessa quem você é? De que forma que a arte entra ou de que forma que você entra na arte? Enfim, como essas duas coisas se entrelaçam?
NAVALHA: Isso é muito curioso porque, assim, como eu sou instrumentista e quando eu estou compondo música eu componho música instrumental, seja ela música pra um filme ou então uma música que eventualmente vai ter a letra colocada por alguém, eu sou essencialmente uma artista abstrata, né? O que eu faço não tem um objeto. Nunca faço uma música pensando, ‘ah, essa música é sobre isso’. Eu tenho amigos que compõem música instrumental também, mas é… o Lourenço, o grande amigo meu baterista da Letrux, ele compõe músicas e o título da música é quase como um álbum de família, assim. As músicas são todas sobre pessoas. Ele fala ‘isso aqui é fulano andando na rua tal’, ‘a gargalhada da Mel’, que é uma amiga dele que tinha uma gargalhada engraçada, ele fez a música em cima da gargalhada dela. Então tem um objeto, mesmo sendo música instrumental. Não é o meu caso. Eu tô ainda naquele esquema do piano da minha avó, de ficar achando sons e me maravilhando com esses sons. Então, minha música não é sobre nada. Mas eu sou uma pessoa trans, então a minha música é perpassada por isso, por caminhos que eu mesmo não consigo perceber. Mas onde me toca muito essa questão é na própria ideia que as pessoas têm de uma instrumentista. Ou, geralmente, de um instrumentista, né? Por ser um ambiente que é muito masculino. E mesmo quando eu comecei a aprender a tocar e comecei a me envolver com bandas e tal, as bandas que eu via eram um universo muito masculino. E isso muito antes de eu fazer minha transição de gênero, né? Então, existiam algumas dificuldades ali de estar muito apaixonada pela música e perceber que o meu caminho na música era o do instrumento, era o lugar que eu me sentia mais à vontade, mas perceber que esse lugar era um ambiente muito difícil de navegar, enquanto uma pessoa dissidente de gênero. E foi assim por muitos anos, né? Inclusive quando eu decidi fazer a minha transição de gênero, eu estava no momento que eu ia largar a música. Eu já tinha decidido isso. Eu também sou professora de música, como eu disse, minha formação é essa. E nesse período eu estava dando aula em escolas, além de estar tocando, né, também dava aula particular. E é um ambiente que eu gosto muito, eu gosto muito de dar aula. Então, no momento que eu resolvi que eu ia começar a minha transição de gênero, eu pensei assim: um, que o ambiente da música seria inóspito pra mim, como instrumentista, né? E outro, que eu não queria passar por um processo tão pessoal no palco, né? Não queria essa exposição. Então, é uma história que não é só minha, outras pessoas também passaram por isso, mas a minha ideia era passar no concurso público, eu queria ser professora do Pedro II, que eu cheguei a dar aula lá uma época, é um colégio fantástico, que eu me senti muito acolhida lá. Isso antes da transição, né? E eu pensei, bom, se eu conseguir entrar aqui, eu consigo fazer minha transição e já voltar com emprego garantido, aquela coisa toda, que é uma grande preocupação da comunidade trans, né? A questão da empregabilidade. Mas a vida leva a gente pra rumos que a gente não espera. Então, acabou que no concurso eu não passei. Cheguei perto até, mas não passei. Mas enquanto eu tava estudando pro concurso, eu estava gravando o primeiro disco da Letrux. Letrux em Noite de Climão. Foram coisas que aconteceram em paralelo. Isso muito no começo da minha transição. E o disco teve, assim, uma atração grande, né? Foi muito bem recebido. Isso abriu a porta para outros trabalhos. Então, eu comecei a ter muito mais trabalho como musicista do que eu jamais tive, depois da minha transição, uma coisa que eu jamais imaginei que fosse acontecer. Então, a vida me levou para esse caminho, né. Mas eu acho até que em alguma realidade alternativa, onde talvez o disco não fez sucesso e eu passei no concurso, eu acho que nessa realidade alternativa eu tô muito bem também, porque eu gostava muito de dar aula, inclusive eu sinto falta.
MARI: Eu fico fazendo isso também, né? Fazendo caminhos alternativos, e se tivesse acontecido isso…
NAVALHA: Pois é, né?
MARI: Mas que bom que as coisas foram desse jeito, né? E como você vê hoje a presença de pessoas trans na música, né? E pelo visto o caminho foi até um pouco mais fácil, né, do que você esperava.
NAVALHA: Foi, com certeza foi mais fácil do que eu esperava. Mas acho que é importante essa questão de que o meu trabalho é como instrumentista, o meu trabalho é como produtora, então o meu trabalho não é no centro do palco, né? O meu trabalho é nos cantos do palco. Eu não estou no holofote, né? Aquele holofote central. E quando eu tava começando a transição, a Liniker já tava ganhando um reconhecimento grande, ela tinha acabado de lançar o primeiro sucesso dela e aquilo foi um lampejo assim de, ‘nossa até que é possível’, sabe, foi muito importante ver a Liniker. E pra mim foi uma coisa de ver que existia a possibilidade de estar na música. Só que tem essa questão dela ser a vocalista, né? E muitas vezes, não só pessoas trans, como mulheres, estão, né, na música nesse lugar do holofote. Você vai em shows de cantoras e muitas vezes você tem aquela cantora lá, linda, no centro do palco, com o holofote, o microfone. Mas você vê o pessoal que tá em volta dela, é um bando de homens de camisa preta, meio que na penumbra, assim, tocando. E o meu lugar é o desses homens de camisa preta, o meu lugar profissional, né? Então, por isso que eu achava muita dificuldade e estive entre esses homens de camisa preta muitas vezes e ouvindo conversas homofóbicas e machistas, e tal, e tendo que sobreviver àquilo, né? Porque precisava do trabalho, então não dava nem pra ficar criando caso. E depois da transição, as coisas mudaram bastante, assim, e não só comigo, né? A gente tem muito mais pessoas trans na música, mas eu ainda vejo poucas pessoas trans fazendo o que eu faço, no lugar de instrumentista, nos bastidores, na equipe técnica. Isso que eu acho muito importante de ter, né. Porque, claro, que as pessoas trans no holofote são importantíssimas porque elas dão uma visibilidade que eu jamais conseguiria ter, né? E são exemplos pras pessoas. Mas pra qualquer obra de arte acontecer, são muitas mãos envolvidas, são muitas pessoas envolvidas. E eu gosto de estar onde eu tô, eu gosto do trabalho que eu faço. Eu não quero estar no holofote, na verdade. Eu gosto do trabalho de arranjo, de instrumento, eu adoro isso. E adoro me preocupar mais com isso do que com o diálogo direto com o público, né? Que é o que uma cantora ou um cantor geralmente tem no palco. Eu tô mais no diálogo com a banda. E eu adoro isso. Tem muitos lugares para serem ocupados.
MARI: O podcast começa, né, no dia de combate à LGBTfobia e vai até o dia do orgulho. Então, pensando um pouco nessa trajetória, como é que a gente pode pensar o mundo das artes, e um Brasil mesmo, menos LGBTfóbico, para que a gente possa chegar de fato num ponto de orgulho, né? Pensando na sua área, nas artes, o que que é possível ser feito, não sei se por parte das bandas, dos produtores ou de, né, mesmo incentivos públicos, de editais, o que você acha que a gente pode fazer pra tornar o ambiente mais diverso e mais inclusivo?
NAVALHA: Acho que do ponto de vista dos trabalhos musicais, não como uma obra musical que está sendo exposta, mas como uma equipe, né, procurar ter equipes mais diversas. Ter essas pessoas trabalhando, se preocupar em ter uma equipe diversa, porque é muito mais fácil você simplesmente pegar uma pessoa que traz na sua própria existência uma pauta de representatividade, você bota ela lá na cara do seu projeto, só que todo o resto é cis-heteronormativo. E são trabalhos, eu estou falando de arte, mas estou falando também de trabalho, de mão de obra. Acho que as bandas, as cantoras e cantores se preocuparem de ter uma equipe diversa, e eu não estou falando só de questão de gênero, mas todo tipo de diversidade, isso só vai enriquecer o trabalho. E, novamente, não é questão artística, não é uma coisa que vai estar na vitrine do trabalho, não é uma coisa que necessariamente vai influenciar no resultado final artístico, mas é o ambiente que você cria, de ter aquelas pessoas lá. Eu sei que eu me sentiria muito mais à vontade se existissem mais pessoas trans fazendo o que eu faço, ou na equipe técnica, nos lugares que eu frequento enquanto trabalhadora da música, né? Então, eu acho que é essa preocupação para além da vitrine. É a preocupação para quem está carregando aquele projeto, que muitas vezes não vai aparecer no post do Instagram, mas sem aquela pessoa aquele projeto não acontece.
MARI: E um pouquinho do ambiente de ensino também, né? Já que você é professora, como é que você vê esse espaço?
NAVALHA: Esse é mais difícil ainda, né? Porque agora eu percebo quão ingênua eu era de achar que eu poderia ter uma vida tranquila como professora, porque na verdade o que aconteceu foi o oposto. Eu fui demitida de escolas que eu dava aula, escolas particulares, né? Eu não estava mais no Pedro II. E foi muito difícil pra mim, assim, porque eu era uma profissional bem quista, assim. Os alunos gostavam muito de mim, a equipe gostava de mim, os pais gostavam muito de mim. Eu sempre me dei muito bem nesse ambiente. Só que não me foi permitido continuar enquanto pessoa trans, no momento que eu comecei minha transição. E aí tem essa questão que é muito cruel, né? Eu tava até falando disso com uma outra pessoa que também transicionou num ambiente de trabalho, que é de você ter que pedir permissão pro seu empregador pra você ser quem você é, né? Eu tive que chegar pra diretoria das escolas e falar: ‘ó, estou passando por um processo de transição de gênero, está acontecendo’, né, isso. Assim, porque eu estava indo receber o Prêmio Multishow com a Letrux, enquanto eu dava aula fazendo o que a gente chama de cisplay, né? Que é quando você finge ser uma pessoa cis para determinada situação. O ambiente escolar, ele sempre chega depois. Isso por vários motivos. Tem a questão do preconceito dos pais, preconceito dos adultos em geral, né, não só os pais. A recusa que eu tive por parte da diretoria e tal foi usando como justificativa os pais. Falando, ‘ah, nós temos pais muito conservadores, nós não podemos correr o risco de perder aluno, perder matrícula, perder mensalidade’. É um grande risco que eu estava botando nessas crianças, né? Então, essas coisas fazem com que o ambiente escolar seja devagar em acatar mudanças. Mas também acho que porque o ambiente escolar acaba passando pelo ambiente acadêmico, né. Os professores são formados na academia. E o ambiente acadêmico também é um ambiente devagar. As mudanças estão acontecendo na rua, mas aí tem que chegar alguém e escrever uma tese sobre isso para aquilo entrar no ambiente acadêmico. Então, o lugar do ensino é muito lento nas mudanças, e deveria ser o contrário, né, deveria ser onde as mudanças acontecem.
MARI: Não, ainda mais com tudo que a gente está vivendo no Brasil, você ainda tem uma onda bastante conservadora, principalmente em cima das escolas, né?
NAVALHA: Sim, exatamente.
MARI: Então, para a gente terminar, uma mensagem que você queira deixar para quem está ouvindo a gente, para quem principalmente está passando por um processo de transição agora, o que você deixa, né, para essas pessoas?
NAVALHA: Ai, nossa, tanta coisa, né? Nossa, o que deixar? Que legado? Eu ainda estou com a cabeça na questão da escola, eu fico pensando muito nas crianças, porque existem crianças trans, né, as pessoas não prestam atenção nisso, mas eu fui uma criança trans e nesse momento existem várias crianças trans que estão aí no ambiente escolar ou fugindo do ambiente escolar porque não conseguem se sentir bem dentro dele. Então, sei lá, escutem as crianças. Criem ambientes seguros para as crianças trans. Não tentem encaixar as pessoas em caixinhas. Não sei, é tão difícil pensar nisso. Eu fiquei com a cabeça muito nesse lugar das escolas, porque foi a última coisa que a gente falou, né? Então, eu tô pensando mais nas crianças que nem sabem ainda o que que é gênero direito do que nas pessoas que estão pensando em fazer transição. Mas pra quem tá aí se debatendo com questões de gênero, acho que o que eu posso dizer é continua se debatendo, porque a gente se debate a vida inteira e é muito bom, na verdade, pode ser uma coisa muito boa, o que faz as questões de gênero serem difíceis é a sociedade, né? É o ambiente que a gente vive, são as responsabilidades que a gente tem enquanto pessoas adultas, isso é o que torna tudo difícil, mas no âmbito pessoal de você se encontrar, de você buscar formas de ser, é um processo que pode ser muito prazeroso também.
MARI: Perfeito. Navalha Carrera, muitíssimo obrigada, viu?
NAVALHA: Obrigado a você, Mari.
MARI: A gente costuma terminar esse podcast ao som de Felipe Catto, mas hoje vamos prestigiar a nossa convidada e encerrar com Ondas Consideráveis, do disco de mesmo nome, de Navalha Carrera.
SOBE SOM – ONDAS CONSIDERÁVEIS
CRÉDITOS:
Você acompanhou o penúltimo episódio do Podcast Transformando as Artes, uma produção da Radioagência Nacional em parceria com a Agência Brasil. Os em capítulos marcam as sete semanas entre o Dia Internacional Contra a LGBTfobia, comemorado em 17 de maio, até o Dia Internacional do Orgulho LGBT, dia 28 de junho.
A reportagem, entrevistas e narração foram minhas, Mariana Tokarnia.
Adaptação, edição, roteiro e montagem de Akemi Nitahara
Revisão e coordenação de processos de Beatriz Arcoverde
Gravação de Rafael Espíndola e Virgílio dos Santos
A vinheta foi gentilmente gravada por Vívian Fróes.
Versão em Libras da equipe de tradução da EBC
Utilizamos as músicas Preciso me encontrar, de Candeia, na voz de Liniker acompanhada de Ilú Obá De Min, e Ondas Consideráveis, de Navalha Carrera.
A produção também está disponível nas plataformas de áudio e com interpretação em Libras no Youtube. O último episódio do podcast Transformando as Artes é com a artista não binária Ana Matheus Abbade.
SOBE SOM – ONDAS CONSIDERÁVEIS
ENCERRAMENTO DA TRILHA DOS CRÉDITOS
Sobe som