Moradores de comunidades ribeirinhas e de flutuantes encalhados no Rio Negro relatam sofrer “abandono” por parte do poder público local e estadual. Entre as situações estão a falta de recebimento de cestas básicas, de acesso à água potável e energia elétrica.
Segundos relatos ouvidos pela Agência Brasil, alguns moradores estariam com dificuldades para conseguir se alimentar, passando até fome. Eles também reclamam de dificuldades de acessibilidade para deixar o local onde moram e ir às áreas urbanas da região metropolitana de Manaus, em busca de alimentos e cuidados de saúde.
As famílias que vivem em flutuantes encalhados na região conhecida como ilhas, do outro lado da ponte Jornalista Phelippe Daou, que separa Manaus do município de Iranduba, passam por situação de privação, em alguns casos sem acesso à energia elétrica e água, sem receber cestas básicas, chamadas de rancho e anunciadas pelo poder público municipal e estadual.
Um desses moradores, o comerciante Francisco Aldir Ferreira, 51 anos, vende farinha, açúcar, pão e outros itens em um pequeno flutuante encalhado no leito do rio. Ele contou à Agência Brasil que as cerca de 80 famílias estão sem acesso à água encanada. No local onde seu comércio está encalhado, localizado pouco depois do distrito Cacau Pirêra, moram cerca de 80 famílias.
“A gente sente falta de muita coisa. Água, mercadoria, comida também. Às vezes, a pessoa traz ranchos (cestas básicas) e não entrega direito pra gente. O prefeito também não liga”, relatou. “Às vezes chega a luz, às vezes não tem. É uma briga feia”, disse o comerciante.
A vendedora autônoma Onete Moraes, 31 anos, informou que há cerca de cinco dias a água não aparecia nos canos.
“A água é complicada, dia que vem, dia que não vem, entendeu? Está muito difícil essa seca, piorou para todo mundo, nem pescar está dando. Tudo seco, não tem condições. Olha só quantos quilômetros a gente tem que andar para chegar lá na beira do rio, já está quase em Manaus”, afirmou. “Então, para todo mundo ficou muito dificultoso nessa seca aqui, está horrível mesmo, difícil”.
Diante da situação, Onete e alguns moradores decidiram iniciar uma ocupação em área seca. A medida tem por objetivo forçar a prefeitura a construir moradias para quem vive em flutuantes.
“A prefeitura eu creio que tem condições de dar uma moradia assim para o povo do flutuante, entendeu? Mas em casas que é na beira da rua”, disse Onete, que lembrou a situação de moradores de flutuantes encalhados nas localidades chamadas de ilhas. “Essa é a situação da população ribeirinha e das palafitas que têm aí para trás. Tem casa pra lá ainda, são piores do que nós, porque aqui ainda tem como puxar um cano de água e para eles lá, nem energia tem. Então, a gente não tem que falar só por um, mas por todos que estão aqui, que vivem essa situação, de seca”, afirmou.
Nessas localidades, a exemplo de Ilha Iranduba, Ponta da Piraíba, Alagadiço e outras, é que a situação é mais drástica. Além da falta de energia, do acesso à água potável, para conseguir alimentos, os moradores têm que enfrentar caminhadas de mais de uma hora em meio ao leito lamacento do Rio Negro.
É o caso do pescador Adriano Rodrigues, 38 anos, que a cada dois dias faz a travessia para comprar água. À Agência Brasil ele explicou que, além de estar sem energia elétrica há cerca de dois meses, a água que os moradores utilizam vem de uma cacimba cavada em uma das ilhas.
“Sem luz e tomando água da cacimba. Se quiser, como faço, eu vou lá na feira e trago cinco, seis garrafas na costa. Toda viagem que vou, levo esse saquinho para trazer com as garrafas dentro. Durante todo esse tempo, foram seis garrafões de água”, relatou. “Se não tivesse a bicicleta do filho dele (disse apontando para outro pescador), eu iria andando e ia ser pior ainda. De vez em quando, tenho que ir ao médico e andar tudo isso para chegar lá”, reclamou.
Segundo Rodrigues, há mais famílias em outros trechos do rio que passam por situações ainda mais drásticas. Ele disse que mesmo que o rio encha até o fim do ano, a perspectiva é de que só consigam desencalhar seus flutuantes em janeiro.
“Todos estão passando pela mesma situação. Tem gente mais para dentro ali, atolado, que não tem condições de sair. E vai sair depois de nós. Saímos primeiro porque ainda é barco, mas os flutuantes saem depois, porque não tem condição, talvez a gente vá sair daqui para janeiro, ou lá para o fim de dezembro”, observou.
Raimundo Lucas da Silva, 61 anos, pescador amigo de Rodrigues, criticou a ausência do poder público que, segundo ele, só apareceu uma vez para entregar cestas básicas aos ribeirinhos das ilhas.
“A situação aqui está precária, estamos dentro da lama, sem ajuda de governo, de prefeito, vereador, não temos ajuda de nada. Sem poder sair para nenhum canto, só para Cacau Pirêra, para Manaus você não pode sair. Estamos aqui desde que começou a secar e até agora está assim. Quando o rio encher é que vamos poder sair”, disse. “Teve uma seca grande, ficou tudo seco, mas foi rápido. Agora, essa que estamos atravessando aqui está difícil mesmo, não temos apoio do governo. O prefeito veio aqui uma vez, deu uma cestinha básica deste tamanho” falou, gesticulando para mostrar um pequeno pacote.
“Ele (o prefeito) foi embora, abandonou a gente, pedimos ajuda para fazer uma escavação para as canoas poderem passar, ir para o outro lado comprar um gelo, porque você está vendo essa água. Pegamos água de uma cacimbinha. Estamos sem luz há dois meses”, acrescentou.
A Agência Brasil entrou em contato com a prefeitura de Iranduba, mas não teve retorno.
Em Manaus, nas comunidades do bairro Tarumã-mirim, na zona rural, a situação também é preocupante devido a problemas de deslocamento e não recebimento de cestas básicas. Na comunidade Nossa Senhora De Fátima, formada por cerca de duas mil pessoas, moradores citam uma única entrega de cesta básicas para a população local, no início de outubro.
O vice-presidente da Associação dos Moradores da Comunidade Nossa Senhora de Fátima, Lázaro Furtado de Santos, 65 anos, disse que os cerca de 2 mil habitantes têm sofrido para manter o sustento e se alimentar.
“Olha, a dificuldade tem, prometeram aqui um rancho (cesta básica), para nós não, para a comunidade, né? Em 200 cestas básicas vieram cinco itens para cada família. Não veio nem uma cesta básica, veio um quilo de arroz, meio de feijão, um pacote de café de 100g, um óleo, um açúcar. Para quem veio açúcar não veio óleo, para quem veio farinha, não veio o açúcar e assim foi sucessivamente”.
Santos disse ainda que os moradores esperam a construção de uma estrada asfaltada ligando a comunidade à zona urbana de Manaus. Segundo ele, as obras tiveram início há alguns anos, mas continuam longe da conclusão.
“Se vier o asfalto, fica melhor para todo mundo. Caso não venha, se for só uma maquiagem que os políticos fazem, quando chover não vai ter mais acesso de novo, vai ficar enlamaçado, vira buraqueira”.
Por enquanto, os moradores utilizam uma estrada de barro, enquanto aguardam a chegada do asfalto para ir a Manaus. O trajeto, porém, é demorado, e, por isso, o meio mais utilizado ainda é o deslocamento pelas águas dos rios. Com a seca, houve aumento nos custos com transporte feito por mototaxistas, uma vez que é necessário caminhar, dependendo da comunidade, por vários minutos ou até mesmo horas.
Dona de um restaurante na comunidade, Conceição Ferreira Marical, 51 anos, conhecida como Cátia, contou à Agência Brasil que teve que reajustar o preço da refeição, por causa do aumento com os custos de transporte. Ela disse que em tempos de cheia, os barcos chegam no começo da comunidade, mas com a seca, teve que acrescentar o custo do transporte para não ter prejuízo.
“Tá muito difícil trazer as coisas de lá (Manaus). Gastamos muito para chegar aqui. Eu vendia minha refeição a R$ 10,00 e aumentei R$ 2,00, o pessoal até reclamou, mas aleguei que é preciso entender que, agora, estamos gastando muito para chegar aqui. Lá (em Manaus) eu pego o carro para descer a Marina, R$ 40,00. Aí eu pago o pessoal para carregar, vão mais R$ 30,00. Aqui, pego um mototáxi, são R$ 10,00 a cada viagem. Gastamos muito para chegar”, disse.
A prefeitura de Manaus informou que, na primeira fase da Operação Estiagem, 481 famílias de 11 comunidades da região do Tarumã-Açú receberam ajuda humanitária fornecida pelo município, com 606 cestas básicas, 6.100 litros de água potável e 379 kits de higiene, além de poços artesianos nas comunidades Tiú e São Sebastião.
De acordo com a prefeitura, a operação beneficiou ainda 77 comunidades ribeirinhas de Manaus com 6.229 cestas básicas, 4.833 kits de higiene e 43.120 litros de água potável, incluindo 23.660 moradores ribeirinhos da capital amazonense.
“Na segunda fase, iniciada na semana passada com auxílio do governo federal no valor de R$ 3,6 milhões, por meio do Ministério da Integração e do Desenvolvimento Regional, o objetivo da prefeitura de Manaus é levar ajuda humanitária a 81 comunidades ribeirinhas, incluindo as localizadas na região do Tarumã-Açu”, diz nota encaminhada pela assessoria. A Agência Brasil também entrou em contato com o governo estadual, mas não obteve retorno.