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Reforma Agrária: a mãe das reformas de base

Reforma Agrária: a mãe das reformas de base


GOLPE DE 64: PERDAS E DANOS

Primeira temporada: Futuro interrompido

Episódio 3 – Pavio Aceso

Trilha de abertura 

JOÃO GOULART – Colagem de trechos do Discurso em 13 de Março de 1964:…sobretudo pela reforma agrária, que será o complemento da abolição do cativeiro… …aquela reforma agrária pela qual lutamos……reforma agrária com pagamento prévio em dinheiro não é reforma agrária……reforma agrária, como consagra a nossa constituição……no Japão, já se fez a reforma agrária…a reforma agrária é produto da inadiável necessidade de todos os povos do mundo…a reforma agrária também é, trabalhadores, uma imposição do próprio imperativo do progresso nacional…

ELIANE GONÇALVES: No comício de 13 de março de 1964, o presidente João Goulart usou a palavra “reforma” 56 vezes. Em 24 delas, acompanhada pela palavra “agrária”. reforma agrária. 

SUMAIA VILLELA: A reforma que mais dava o que falar. Um tema que estava na boca do povo e na luta do campo fazia tempo. Nasceu do conflito agrário. Que, se a gente parar pra pensar, tá no DNA do Brasil.

ELIANE: A reforma agrária era a principal das reformas de base, um pacote de mudanças estruturais que Jango pretendia implementar no país. Esse projeto é parte de um Brasil que não foi, que seria. Assim como uma nova organização da sociedade, que surgia num contexto de muita pressão popular.

SUMAIA: Seria e não foi porque a ditadura militar passou por cima de tudo, e instalou, por 21 anos, outro projeto econômico e social no lugar. É nesse Brasil interrompido que o podcast Perdas e Danos mergulha. Eu sou Sumaia Villela…

ELIANE: E eu sou Eliane Gonçalves. Toda quinta-feira a gente solta um novo episódio. Esse é o terceiro. Se você chegou agora, pode maratonar o que já saiu depois que ouvir a gente nesse aqui até o final.

SUMAIA: Vamos saber mais sobre reforma agrária. Que era considerada tão importante para resolver todos os outros problemas que a gente decidiu contar essa história em dois capítulos.

ELIANE: Bora começa a descascar esse abacaxi que foi plantado desde a farsa do descobrimento.

Vinheta do podcast

Efeito sonoro de ondas de pássaros cantando 

SUMAIA: No início, eram as caravelas cheias de gente branca chegando no litoral de uma costa que viria a ser chamada de brasileira. A história da luta por terras no país começa aí.

ELIANE: Bom, os primeiros ocupantes foram expulsos… ou dizimados mesmo. Os indígenas. Depois, ao longo de séculos, chegaram, em navios, levas de gente de outras cores. Milhões de negros escravizados, explorados em solo alheio. Também tinha uma parcela de brancos pobres.

SUMAIA: E esse povo todo construiu a história de uma população à margem do direito de viver e de se identificar com um pedaço de chão. Que não é só um chão, mas um mundo. De possibilidades e de pertencimento.

ELIANE: A gente não vai se prolongar nessa reflexão, já vamos pro tempo histórico que nos interessa. Mas não tem como falar de reforma agrária sem lembrar da origem do povo brasileiro.

SUMAIA: E da Lei de Terras, de 1850, quando a ocupação do nosso território ficou condicionada oficialmente a dinheiro. Se você pudesse pagar, você poderia ocupar.

ELIANE: O que definitivamente não era o caso, por exemplo, de indígenas e escravizados.

SÉRGIO SAUER: O professor José de Souza Martins diz que a Lei de Terras foi a ideia de primeiro aprisionar a terra para depois libertar as pessoas, né? Quer a terra, tem que comprar. E aí as pessoas eram escravas, a maioria então não tinha salário para comprar a terra, por isso que ele vai usar esse mecanismo.

SUMAIA: Esse é o professor da Universidade de Brasília, o sociólogo Sérgio Sauer. A frase que ele usou faz referência à abolição da escravidão, que só veio em 1888. Por isso, a terra primeiro aprisionada, e depois a libertação das pessoas.

LEONILDE MEDEIROS: Bom, o que que se faz com as populações posseiras, principalmente pequenos posseiros, né? Que sequer tinham a notícia de que tinham que registrar suas terras, essas coisas não chegavam. Então, desde a Lei de Terras passaram a conviver dois regimes de propriedade: um legal, que é a propriedade registrada, e a propriedade de posse, que era a terra utilizada por milhares de famílias, incontáveis, não há números para isso, né?

ELIANE: E essa, a cientista social Leonilde Medeiros, professora da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro. Os dois colocam o conflito agrário como filho da própria formação do Brasil. E destacam que, antes mesmo de existir a bandeira reforma agrária, a resistência dessas populações que foram privadas do direito à terra já existia desde sempre no país.

Efeito sonoro de bandeira balançando 

LEONILDE MEDEIROS: A gente poderia pensar na resistência indígena. A gente fala: ah, o movimento indígena nasceu hoje. Enquanto movimento organizado é uma coisa mais recente, né? Mas enquanto resistência, ele é tão antigo quanto a chamada descoberta do Brasil.

SÉRGIO SAUER: E desde as primeiras apropriações de terra via sesmarias, era essa lógica de grandes áreas. Para os amigos do rei, para os amigos do governador da capitania e assim por diante. E associado a isso, isso é uma criação brasileira, que é a chamada grilagem. Então, o rei destinava para o João uma sesmaria de 5 mil hectares e registrava 50 mil.

SUMAIA: Aliás, dando dois passos pra trás. Será que todo mundo sabe o que é reforma agrária? A gente tá na mesma página? O Sérgio explica de uma forma bem simples.

SÉRGIO SAUER: É uma mudança na distribuição das terras, criando uma massa de famílias com acesso à terra em áreas menores. Portanto, voltadas para a produção de alimentos e etc. Então, a reforma agrária, fundamentalmente, seria uma política de Estado, fazendo uma distribuição mais igual das terras. E ela tem que ser acompanhada de outras políticas, como política de crédito, política de assistência técnica, de saúde, de educação, escolas do campo.

ELIANE: E isso foi feito em vários países, de várias formas. Enfim, o novelo é longo e é importante que ele seja puxado. A gente vai fazer isso num futuro próximo, né, Sumaia?

SUMAIA:Eita, spoiler de novas produções. É isso. Mas aqui a gente vai voltar, ou melhor, acelerar pra década de 1960 e continuar a investigar o Brasil que não foi. Vamos descobrir qual era a situação na zona rural do país. E que reforma agrária era essa que despertava tantas paixões….

Efeito de vídeo acelerando

JOÃO GOULART:  A reforma agrária também é, trabalhadores, uma imposição do próprio imperativo do progresso nacional…

ELIANE:  A gente sempre volta nesse comício de 13 de março de 1964, né? Foi realmente um divisor de águas. E a reforma agrária não tava só no discurso, nas ideias do João Goulart, não.

SUMAIA: Um pouco antes de subir no palanque, o presidente já tinha colocado a nova política  no papel. 

JOÃO GOULART: Trabalhadores, acabei de assinar o decreto da SUPRA (aplausos)

ELIANE: SUPRA. A Superintendência de Política Agrária

JOÃO GOULART: …assinei, meus patrícios, com o pensamento voltado para a tragédia do irmão brasileiro que sofre no interior de nossa Pátria…

SUMAIA: O decreto determinava a desapropriação imediata das fazendas com mais de 500 hectares que estivessem a até 10 quilômetros de rodovias e ferrovias federais. 

ELIANE: Para ter uma ideia, o menor município do Brasil hoje, Santa Cruz de Minas, em Minas Gerais tem 350 hectares. 

JOÃO GOULART: Não é justo, trabalhadores, que o benefício de uma estrada construída com o dinheiro do povo venha beneficiar apenas as pequenas minorias latifundiárias desse país. Não se compreende que uma estrada como a  Rio-Bahia…

SUMAIA: Rodovia Rio-Bahia, hoje a BR 116. 

JOÃO GOULART: …que os 800 quilômetros asfaltados da Rio-Bahia, que custaram 70 bilhões de cruzeiros ao povo brasileiro venham a beneficiar os latifundiários, que tem o seu valor multiplicado nas suas propriedades. 

ELIANE: É. O decreto 53.700, assinado por Jango naquela sexta-feira 13, determinava a divisão dos latifúndios brasileiros em propriedades de, no máximo,100 hectares, e queria começar por regiões estratégicas, bem localizadas e que facilitassem a logística para escoar os produtos.

SUMAIA: Aliás, é onde o desmatamento é mais intenso, já que é uma área muito visada.

ELIANE:  O decreto também determinava que eram de terras de interesse social todas as propriedades com mais de 30 hectares às margens de açudes ou que tivessem sido beneficiadas com obras de irrigação com dinheiro público. 

JOÃO ROBERTO MARTINS: Das reformas, a mais polêmica e ameaçadora era a reforma agrária. 

SUMAIA: João Roberto Martins já esteve aqui com a gente no primeiro episódio, e é  historiador e professor da Universidade Federal de São Carlos. 

JOÃO ROBERTO MARTINS: A reforma agrária mexia com a vaca sagrada da sociedade brasileira, que é a propriedade da terra. Muito mais do que aumentos salariais e greves operárias. 

Efeito de vaca com sino no pescoço balançando 

ELIANE: A propriedade é a vaca sagrada, como diz o professor, e a divisão dela, a coluna vertebral das reformas estruturais de base propostas por Jango. 

SUMAIA: Para entender porque o assunto era tão central, vamos de flashback.

Efeito de vídeo rebobinando 

ELIANE: O Censo do IBGE de 1960 dizia que a população brasileira era de 70 milhões de pessoas. Desse total, 39 milhões viviam no campo. Sabe? 55%… Mais da metade da população brasileira.

SUMAIA: E esse povo todo ocupava a terra de um forma bem desigual. O Censo Agropecuário de 1960 dá um bom diagnóstico disso.

ELIANE: 1%, apenas 1% dos estabelecimentos rurais correspondiam a 44% do total de hectares declarados no censo. São as propriedades acima de mil hectares. Sabe o Parque Ibirapuera, em São Paulo? Nessa área cabem seis dele. É 12 vezes maior que toda a região tombada do centro histórico de Salvador.

SUMAIA: O grupo de 10 mil hectares tem 16% das terras. 10 MIL hectares. Sabe quanto é isso? 100 quilômetros quadrados.

ELIANE: Tem mais de 420 municípios brasileiros menores que isso. É como se você andasse de Belo Horizonte até Ouro Preto passando dentro de uma fazenda só.

Efeito de carro acelerando 

SUMAIA: Já as terras com menos de 10 hectares eram quase metade dos estabelecimentos rurais, mas ocupavam 2% da área total.

ELIANE: E quem não era proprietário, não estava protegido por direitos como salário mínimo, jornada de trabalho, férias. Enquanto  os trabalhadores urbanos – operários de fábricas, funcionários do comércio –  já contavam, desde 1934, com a primeira legislação trabalhista, quem vivia no campo não tinha nada disso.

ANACLETO JULIÃO: O que facilitou a Getúlio Vargas criar as leis trabalhistas foi exatamente o compromisso de que essas leis não fossem levadas para o interior, mas só prestavam para a cidade. A grande maioria dos parlamentares, tanto estadual como federal, eram os grandes latifúndios.

SUMAIA: Esse é Anacleto Julião.

ANACLETO JULIÃO: Sou antropólogo social. E sou filho de Alexina Lins Crespo de Paula, uma grande batalhadora, teve uma militância muito, muito importante nas ligas. E de Francisco Julião, que, na verdade, foi um… Talvez, na época, foi a maior liderança que existia nas ligas camponesas, que tiveram uma repercussão internacional.

ELIANE: Daqui a pouco vamos falar mais sobre Alexina, Francisco Julião e as ligas camponesas. Mas, por enquanto, vamos continuar construindo o cenário que nos levou até elas, as Ligas. 

SUMAIA: Até ali, pelos idos de 1960, a organização do trabalho no campo seguia a lógica do manda quem pode, obedece quem tem boca para alimentar. As modalidades de contrato entre trabalhadores e fazendeiros variavam. Uma dessas modalidades era o cambão.  

ANACLETO JULIÃO: É aquele dinheiro que o camponês é obrigado a dar ao patrão, mas não em forma de dinheiro, mas em forma de dias de trabalho. Entendeu? Então, o camponês, na melhor época do ano, o patrão chamava todo mundo para trabalhar na sua colheita e o camponês ficava impedido de trabalhar no seu pedacinho de terra para a lavoura de sobrevivência. 

ELIANE: O Urbano, liderança histórica da Contag, a Confederação dos Trabalhadores da Agricultura, ajuda a explicar outros tipos de contrato. 

FRANCISCO URBANO: Bom, eu sou Francisco Urbano Araújo Filho, natural de São Paulo do Potengi, Rio Grande do Norte, trabalhador rural, como a gente chamava normalmente, meeiro, com meu pai na terra dos outros. O que que é um meeiro? A metade da produção é do proprietário, mas o 100% de despesa é sua. Ou seja, você tem 50%, mas é 100% da despesa. 

SUMAIA: Anotou? Metade do que a família do Urbano produzia era para o fazendeiro, o dono da terra. Mas as sementes, o trabalho de preparar a terra, plantar, colher… tudo  por conta do meeiro. Tinha também a tarefa:

FRANCISCO URBANO: Uma tarefa, era o quê? Era cortar uma quantidade de cerca, madeira, derrubar madeira para fazer um roçado, limpar, por exemplo, de enxada, uma quantidade de hectare ou cova. E a tarefa era sempre uma tarefa muito grande muito para se fazer. Às vezes era dois dias aquela tarefa, que era muito menos do que o suposto salário que as pessoas pagavam na região, um ou outro que pagava um dia de serviço em dinheiro. Ou, muitas vezes, não era em dinheiro, era pagamento em alimento. Portanto, um quilo de feijão, uma cuia de farinha.

ELIANE: Meeiro, cambão, tarefa… Contratos diferentes e uma característica em comum: a falta de acesso à terra que forçava as pessoas a relações de trabalho precárias.

FRANCISCO URBANO: Sabe qual era a lei que poderia aplicar para um meeiro, arrendatário, condescendado? Era a lei do inquilinato. Não tinha proteção. Está certo que é um aluguel, quando você arrenda, ou você trabalha de meia, um contrato de parceria, como chama. Parceria devia ser a metade de tudo, né? Então não podia ser parceria quando não era metade só da produção, mas a despesa era toda minha, de meu pai. 

Trecho da música “Sina de Caboclo”, com João do Vale 

Eu sou um pobre caboclo/ Ganho a vida na enxada/ O que eu colho é dividido/ Com quem não plantou nada

SUMAIA: E ainda tinham as proibições que os fazendeiros faziam pra impedir uma ocupação permanente da terra. A professora Leonilde dá o exemplo das fazendas de cana-de-açúcar.

LEONILDE MEDEIROS: Os moradores de engenho, eles eram hierarquizados, né? Por exemplo, você planta uma árvore frutífera, né? Aquilo lá marca o tempo que a pessoa tá ali, e é uma base para depois reivindicar a posse. Essas marcas de uma possível continuidade na terra, elas hierarquizavam a morada. Então tem aqueles que só podiam plantar lavoura temporária. E tinha aqueles aos quais era permitido o plantio de árvore, de construção de casas, ter animais, né? Então tem toda uma hierarquização interna que tem a ver, inclusive, com relações de fidelidade ao senhor do engenho.

ELIANE: E quem não seguisse as regras do dono da fazenda, simplesmente era expulso, despejado. Uma mão na frente e a outra atrás.

LEONILDE MEDEIROS: Uma tensão que vai alimentando rebeldias, situações de conflito, inclusive a saída, por exemplo, de moradores das fazendas onde eles estavam porque, enfim, não se acertam com o patrão. Eles saem e vão para onde? O que sai não é aceito em outra fazenda, porque é considerado rebelde, né? O criador de caso. Então vai se estabelecer nas fronteiras, entende? Das fazendas. Vai virar posseiro ali no entorno.

FRANCISCO URBANO: Então, era uma situação muito, naquela época, muito difícil. 

SUMAIA:  Só que quando a vida tá muito difícil e as pessoas não tem nada, praticamente nada a perder, a saída é lutar por direitos. 

Trecho da música “Bandeira de Guerra”, com Paulo Vanzolini

Minha bandeira de guerra/ Meu pé de briga na terra/ Meu direito de ser gente

ELIANE: O interior do Brasil era um barril de pólvora, já tinha pavio aceso por tudo quanto é canto do país. 

SUMAIA: Leonilde Medeiros cita alguns pontos de conflito. Em São Paulo, teve o Arranca-Capim.

LEONILDE MEDEIROS: Você tem por exemplo, situações emblemáticas dos arrendatários de Santa Fé do Sul. Que as pessoas se tornavam pequenos arrendatários de uma fazenda, e tinha um contrato. Durava três anos, e eles tinham que sair deixando o capim plantado, ou seja, formava o pasto pro patrão, né? Nos anos 1950 teve uma revolta importante, chamada revolta do Arranca Capim. Em que os arrendatários decidiram não sair, e arrancaram todo o capim que tinham plantado. Bom, isso gerou repressão policial, prisões, o conflito ocupou manchete de jornal, né?

ELIANE: No Rio Grande do Sul, na década de 60, o Master criou a estratégia dos acampamentos para lutar por desapropriações – a inspiração do método do MST hoje em dia. Leonel Brizola era governador, o que fez toda a diferença.

LEONILDE MEDEIROS: Brizola não colocou a polícia em cima deles e o Brizola apoiou os acampamentos. Mas que, enfim, coloca o foco da luta por terra num estado onde aparentemente não existia conflito, porque era um estado com muita colônia, muito migrante, tudo pequeno proprietário, né? Aí o Master mostra as contradições do Estado.

SUMAIA: Em 1957, no Paraná, milhares de posseiros disputavam 450 mil hectares de terras ocupados em um projeto de colonização do governo de Getúlio Vargas. Só que uma empresa reivindicou a titularidade da terra e contava com o apoio do governador do estado, Moysés Lupion. 

ELIANE: A pressão para expulsar os posseiros incluiu ameaças, espancamentos e mortes. Até a hora que os posseiros se revoltaram, invadiram a sede da empresa, bloquearam rodovias, ocuparam prefeituras e foram pras ruas das cidades. Depois disso, o governo recuou e garantiu a titularidade da terra para os trabalhadores.

SUMAIA: O levante também plantou as sementes do que viria a ser o MST, que surgiu no estado. Já o bisneto de Moysés Lupion, Pedro Lupion, é hoje deputado federal pelo PP e  presidente da Frente Parlamentar Agropecuária, o nome oficial da bancada ruralista no Congresso Nacional.

ELIANE: Nós insistimos muito para que o deputado falasse conosco sobre a Revolta dos Posseiros de ontem e a demanda por reforma agrária dos dias de hoje. Chegamos a adiar o fechamento desse episódio, mas não houve resposta.  

SUMAIA: Resgatamos o pronunciamento de Pedro Lupion, em abril de 2023, logo depois da Frente Parlamentar Agropecuária entrar com vários pedidos de investigação contra um dos líderes do MST, João Pedro Stédile. Assim a gente consegue conhecer a posição do Lupion sobre a reforma agrária. 

PEDRO LUPION: Nós protocolamos na Procuradoria Pública, no Ministério Público do Estado de São Paulo, aqui do Distrito Federal, em várias unidades da Federação e também na PGR, um pedido de investigação. Investigação baseada no Código Penal, diversos artigos, seja esbulho possessório, invasão de propriedade, incitação ao crime e à violência e também desrespeito a nossa Constituição no direito de propriedade. O Brasil não pode assistir calado a uma ameaça grave ao Estado de Direito, uma ameaça grave ao direito de propriedade, uma ameaça grave à nossa Constituição e, mais uma vez, um clima de insegurança no campo para os nossos produtores rurais. 

ELIANE: Mas os movimentos dos anos de 1960 que ficaram internacionalmente famosos estavam no Nordeste.   

Trecho da música “Cárcará” 

Carcará/ Num vai morrer de fome// Carcará/ Mais coragem do que homem

SUMAIA: A começar por Pernambuco. Nos engenhos de fogo morto, quer dizer, aqueles engenhos que estavam abandonados desde que o império da cana-de-açúcar começou a desmoronar. O proprietário abandonava a terra e os moradores ficavam por lá. Aí, em 1950, o mercado reaquece e os donos querem o quê? Voltar à ativa. E isso gera conflito.

ELIANE: Na zona da Mata, município de Vitória do Santo Antão, a fagulha acende no Engenho Galileia. A situação de pobreza dos moradores da fazenda não garantia nem o direito de morrer com dignidade.

Efeito sonoro de toque fúnebre do sino da igreja 

SÉRGIO SAUER: Tinha algumas prefeituras que tinham um caixão comum. Então as crianças morriam, os adultos morriam de fome e pobreza, pegavam o caixão na prefeitura, velavam no caixão, chegavam na cova e despejavam, então devolviam o caixão. Então, a primeira associação que depois virou uma liga era a ideia de direito de enterrar os mortos, ou seja, queria uma pequena contribuição para comprar o caixão e tal

SUMAIA: O Sérgio Sauer cita aí um dos motivos para que os moradores começassem a se organizar. Outra razão era o valor cobrado aos agricultores para permanecer no local, que variava unilateralmente e era considerado abusivo.

ELIANE: É aí que entram em cena Francisco Julião e as Ligas Camponesas.

SUMAIA: Julião era advogado e deputado estadual. Era filho de fazendeiro, mas a decadência dos negócios da família o levou a trabalhar e estudar, o que desviou ele pro outro lado do cabo de guerra.

ELIANE: Ele já trabalhava com direitos dos camponeses fazia um tempo. Aí o pessoal do Engenho Galiléia procurou a ajuda do advogado. 

ANACLETO JULIÃO: Então, ele recebeu esse grupo e pediu a ele para que elaborasse o estatuto que contemplasse o objetivo deles. E ele sabendo da violência que sempre existiu no interior, sugeriu aos camponeses: vamos fazer o estatuto de uma associação só para ajuda mútua entre os camponeses, e vocês podem solicitar do dono da terra, seu Beltrão, que ele seja presidente de honra. E que vocês estão fazendo isso porque vocês poderiam produzir mais dessa forma.

SUMAIA: E assim, nasceu a Sociedade Agrícola e Pecuária de Plantadores de Pernambuco. 

Trilha de notícias antigas 

LUCIANO BARROSO: Diário de Pernambuco, 4 de dezembro de 1958.

Dizendo-se perseguidos por policiais do destacamento de Jaboatão, que estariam agindo a mando dos proprietários da “Usina Bulhões”, uma comissão de camponeses dali, associados à Sociedade Agrícola e Pecuária dos Plantadores de Cana de Pernambuco, compareceu, ontem, à noite, em nossa redação. Segundo os reclamantes, o delegado de Jaboatão, acompanhado de 1 cabo e 1 sargento, além de 10 praças, investira sobre suas residências, espancando-os barbaramente pelo fato de haverem reclamando contra os altos preços das mercadorias cobrados no barracão do engenho e os baixos salários que lhes são pagos. 

ELIANE: Não demorou muito para que o fazendeiro percebesse que a associação não tinha nada de mútua, e os protestos fossem taxados como comunistas e as organizações rebatizadas pela imprensa como Ligas. Ligas Camponesas. O nome é uma referência direta às primeiras organizações marxistas do século XIX. 

Trilha de notícias antigas 

LUCIANO BARROSO: Diário de Pernambuco, 19 de fevereiro de 1959.

A criação das Ligas Camponesas no interior de Pernambuco é um dos fatos que mais preocupam os comandos militares do Nordeste e as classes dirigentes. Há quatro anos que esse movimento – geralmente classificado de comunista – está se formando, com o objetivo de fazer a reforma agrária. Em Vitória de Santo Antão, a 100 quilômetros do Recife, dois engenhos já foram ocupados por trabalhadores e estão funcionando sem que os proprietários consigam retomá-los.  

SUMAIA: As notícias de Galiléia se espalharam rápido entre os camponeses, e a casa de Julião e Alexina, educadora, guarda-costas e esposa de Julião, virou referência para quem tava com fome de direitos.

ANACLETO JULIÃO: No terreno da casa, sentavam-se, por exemplo, 500 camponeses, 300 camponeses, às vezes em dia calmo era 100, e vinham com todos os problemas imagináveis e inimagináveis. 

Trecho da música “Sina de Caboclo”, com João do Vale 

Mas plantar pra dividir / Não faço mais isso não

ELIANE: A reação veio com violência. De novo Anacleto e as memórias de Julião e Alexina.

ANACLETO JULIÃO: Chegou uma ocasião, um camponês lá com uma gaze na cabeça, e aí Julião disse, Alexina, vê o que esse camponês aí tem, que teve uma briga com o patrão. Aí ele tirou a gaze e fez assim. O crânio estava quebrado. Então ela disse, isso aí eu não dou jeito, não. Tem que ir para o hospital agora. É o cérebro do cara que está se mexendo lá dentro. 

Hino dos Estados Unidos 

SUMAIA: E o caso acendeu o alerta até mesmo nos Estados Unidos. O presidente John Kennedy mandou o irmão pra fazer uma visita ao povo do engenho. Ted Kennedy esteve lá em 1961, como parte da visita feita a Pernambuco para tentar criar uma política da boa vizinhança e, obviamente, tentar afastar ideias revolucionárias dos movimentos que surgiam.

ELIANE: Mas o fogo correu no rastilho, e a experiência da associação de camponeses da Galileia foi se replicando. Primeiro Pernambuco, depois Paraíba, Rio Grande do Norte… 

ALANE LIMA: As ligas camponesas começaram a explodir em todos os municípios e em todos os estados, principalmente aqui no Nordeste. A gente iniciou aqui no estado da Paraíba, no município de Sapé. Quando iniciou em Pernambuco, quando a gente vai olhar o município de Rio Tinto, o município de São Miguel, o município de Itabaiana, o município de Santa Rita. Os camponeses passam a se organizar e fazer um levante contra os proprietários de terra.

SUMAIA: Essa é a Alane Lima… 

ALANE LIMA: Eu sou camponesa, sou uma mulher jovem que tive o privilégio, depois de muita luta, de acessar as políticas, a política de reforma agrária, então eu sou filha de famílias assentadas, e também acessei o Pronera, que é o Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária, e hoje sou a camponesa que ocupou o latifúndio da ciência.

SUMAIA: Ela  também é a presidenta do Memorial das Ligas Camponesas, que fica em Sapé, na Paraíba. 

ELIANE: Justamente a casa onde viveu outro grande símbolo dos conflitos agrários do Brasil. Ouve esse pedaço do poema do Ferreira Gullar, João Boa-Morte. A SUMAIA VAI RECITAR AQUI. Conta a história de um lavrador que reivindica direitos e é expulso da fazenda, e acaba vagando com os filhos e a esposa em busca de trabalho, na miséria.

Música instrumental de Nelson da Rabeca 

SUMAIA: Mundico estava morrendo,

coração quase parado.

Deitaram o pobre no chão,

no chão com todo cuidado.

Deitaram e ficaram vendo

morrer o pobre coitado.

 

“- Meu filho”, gritou João,

se abraçando com o menino.

Mas de Mundico restava

somente o corpo franzino.

Corpo que não precisava

nem de pai nem de pão,

que precisava de chão

que dele não precisava.

 

Enquanto isso ali perto

detrás de uma ribanceira,

três cabras com tiro certo

matavam Pedro Teixeira,

homem de dedicação

que lutara a vida inteira

contra aquela exploração.

ELIANE: Pedro Teixeira, aí dos versos, existiu mesmo. Ele foi o líder das Ligas Camponesas em Sapé. E foi eternizado também nas telas.

Trecho do Documentário Cabra Marcado para Morrer

– Vou resolver essa parada com o senhor;

– Não vê que senhor de engenho não morre, administrador não morre? Só quem morre é camponês.

– Seu Vieira, nosso caso não é brigar com o senhor, mas não podemos pagar o aumento.

 

SUMAIA: O filme é a própria alegoria do que a ditadura militar fez com os movimentos do campo. Cabra Marcado pra Morrer tava sendo filmado quando teve o golpe de 1964.

ELIANE: Ele foi feito no Engenho Galileia, por sinal. E o local foi interditado, parte da equipe foi presa, junto com moradores da Liga Camponesa de Galileia. Só concluíram o filme 20 anos depois.

SUMAIA: A violência e a opressão marcaram as duas décadas da ditadura militar no Brasil. Mas no campo, acho que já deu pra perceber, elas sempre existiram.

Trilha do podcast 

ELIANE: O assassinato de João Pedro Teixeira, exatamente dois anos antes do golpe, é um dos exemplos mais emblemáticos. E a morte em vida de Elizabeth, a esposa. Também líder camponesa. Ela sofreu atentados depois do golpe de 64, foi presa e precisou sumir na clandestinidade, apartada dos filhos. 

SUMAIA: Depois que voltou a se apresentar como Elizabeth, ela deu muitas entrevistas. A gente pegou um trecho de uma conversa com a TV Pernambuco. A filha branca de fazendeiro, que renegou a família para viver o amor com o camponês negro, repete sempre uma fala do marido que martela na memória dela.

ELIZABETH: Todo dia me abraçava: “vão tirar minha vida, minha filha. Você continua minha luta?”. Eu nunca tive resposta para dizer a ele. Se iam tirar a vida de meu marido, como eu tinha essa resposta para dar? Eu ficava calada. Agora no momento em que eu cheguei em Sapé, que os nossos companheiros da Liga Camponesa já tinham trazido o corpo dele, estava o corpo dele naquele banco, que eu peguei na mão dele, eu disse: João Pedro, a partir de hoje eu continuo a sua luta para o que der e vier”.

SUMAIA: Lá nos anos sessenta, o assassinato do líder camponês repercutiu tanto que foi parar no New York Times.

Trilha de notícia antiga 

PEDRO LACERDA:  April 9, 1962. Brazil Studing Rise of Peasant Leagues as Concern Is Aroused Over Violence in Northeast Region. Joao Pedro Teixeira was killed on a dirt path six days ago by four rifle shots as twilight lengthened the shadows under the green mango trees.

LUCIANO BARROSO: Tradução – 9 de abril de 1962. Brasil avalia crescimento das ligas camponesas à medida que a violência na região Nordeste desperta preocupação. João Pedro Teixeira foi morto, há seis dias, numa estrada de terra por quatro tiros de espingarda, no momento em que o crepúsculo alongava as sombras sob as mangueiras verdes.

ELIANE: O acusado de matar João Pedro Teixeira fazia parte do Grupo da Várzea, formado por famílias usineiras com propriedades às margens do Rio Paraíba.

SUMAIA: Além de fazendeiro e usineiro, Aguinaldo Veloso Borges era o quinto suplente de deputado estadual na Assembleia Legislativa da Paraíba. Depois do rebuliço causado pela morte, tanto o deputado titular quanto os outros quatro suplentes renunciaram, e Aguinaldo ganhou imunidade parlamentar. 

ELIANE: Ele não está mais vivo. Então decidimos procurar a família para saber se desejariam se posicionar em nome dele. Um dos netos é deputado federal pelo PP da Paraíba: Aguinaldo Ribeiro. Que é irmão da Daniella Ribeiro, senadora pelo PSD. A gente entrou em contato com as assessorias e também por telefone, mas não nos deram resposta. O espaço permanece aberto para o próximo episódio.

Trilha do podcast 

SUMAIA: Todos esses conflitos pressionaram o governo João Goulart a colocar a reforma agrária como mãe de todas as outras reformas de base. Mas a pressão dos grandes fazendeiros, que sempre existiu, também se intensificou.

ELIANE: Só que, agora, a gente vai parar essa história por aqui para continuar no próximo episódio.

LEONILDE MEDEIROS: …É a parte do Estatuto da Terra chamada “Da Reforma Agrária”. Essa parte falava da desapropriação nas áreas de conflito. Que áreas de conflito, cara pálida? Se as áreas de conflito praticamente desapareceram com uma violência brutal – que não foi estudada ainda.

SUMAIA: Vai ser a vez de falar o que pretendiam as organizações do agro e que projeto a ditadura militar implantou.

Trilha do podcast 

ELIANE: Futuro Interrompido  é a primeira temporada do podcast Perdas e Danos. Essa é uma produção original da Radioagência Nacional, veículo da Empresa Brasil de Comunicação (EBC).

SUMAIA: Toda quinta-feira a gente solta mais um episódio da temporada, então já salva nosso perfil e não esquece de usar a ferramenta de avaliação da plataforma se você gostou do que ouviu até aqui. Isso ajuda a chegar em mais gente.

ELIANE: Esse podcast é idealizado e narrado pela Sumaia Villela e por mim,  Eliane Gonçalves. A concepção de pauta da primeira temporada é minha. A Sumaia desenhou a segunda temporada.

SUMAIA: A nossa dobradinha segue em todas as etapas do projeto: pesquisa histórica, produção, entrevistas, roteiro, montagem e pós-produção no geral.

ELIANE: Contamos, ainda, com a valiosa e sensível participação da Fran de Paula. Ela também faz produção, entrevistas, contribui com enfoques, enfim: parceira.

SUMAIA: A edição, parte da montagem e divulgação nas plataformas é da Beatriz Arcoverde. 

ELIANE: A identidade sonora do podcast e a sonoplastia do episódio é de Jailton Sodré e foi feita a partir das composições gentilmente cedidas pelo Nelson Lin, nosso colega aqui na EBC. O Nelson também interpretou os trechos da música Cartas Celestes 2, do Almeida Prado, que aparecem na abertura e aqui no encerramento.

SUMAIA: Já a identidade visual e a arte são assinadas pela Caroline Ramos.

ELIANE: Luciano Barroso faz a narração dos recortes de jornal da época. Pedro Lacerda lê a notícia em inglês do New York Times. A vinheta do podcast tem as vozes de Marli Arboleia e Sayonara Moreno em destaque.

SUMAIA: A versão do episódio em Libras, divulgada no YouTube, é feita pela equipe da EBC.

ELIANE: Usamos material histórico do acervo da EBC, TV Pernambuco, hemeroteca da Biblioteca Nacional, redes sociais da bancada ruralista e do arquivo do New York Times.

SUMAIA: Também usamos músicas de Paulo Vanzolini, que se vivo fosse estaria fazendo 100 anos; João do Vale, dividindo a composição com Jocastro Bezerra de Aquino; de Nelson da Rabeca, por ele mesmo, e de novo João do Vale e José Cândido, na voz de Maria Bethânia. Tudo com fins jornalísticos.

ELIANE: E principalmente obrigada a você que nos ouviu até aqui. Se puder tirar um tempinho para contar o que achou do podcast, agradecemos muito.

SUMAIA: Por favor, deixe uma mensagem em ouvidoria@ebc.com.br ou no site ebc.com.br/ouvidoria. Também dá para fazer uma manifestação em Libras para o número (61) 99862-1971

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